Um estudo publicado na revista “Biology Letters” revelou que a ação humana reorganizou as comunidades de mamíferos no planeta ao longo dos últimos 50 mil anos.
A pesquisa analisou fósseis de seis continentes, demonstra que o desenvolvimento da agricultura há cerca de 10 mil anos alterou os padrões naturais de distribuição de animais que haviam se estabelecido durante a última Era Glacial.
Os pesquisadores examinaram listas de espécies provenientes de mais de 350 sítios arqueológicos e paleontológicos distribuídos por múltiplos continentes, abrangendo o período de 50 mil anos.
Durante a Era Glacial, conhecida como Pleistoceno Tardio, as comunidades de mamíferos formavam padrões distintos baseados em zonas climáticas naturais e barreiras geográficas como cadeias montanhosas e oceanos. Contudo, após o início da agricultura no período Holoceno, apenas 12 espécies domesticadas — incluindo bovinos, ovelhas, porcos e cavalos — se espalharam junto com as populações humanas, desorganizando essas fronteiras naturais.
“O estudo mostra como a agricultura e a caça se combinaram como forças globais poderosas para reorganizar os ecossistemas, o que ainda cria desafios de conservação hoje”, afirmou o professor associado John Alroy, da Universidade Macquarie, coautor do estudo.
12 espécies alteraram o equilíbrio global
A pesquisa identificou que as 12 espécies domesticadas apareceram em metade dos sítios globais estudados, alterando a composição das comunidades animais. O conjunto de dados do Pleistoceno incluiu 475 espécies de mamíferos provenientes de 191 sítios, enquanto o do Holoceno abrangeu 350 espécies — incluindo as 12 domesticadas — distribuídas em 206 locais.
“Todas as espécies domesticadas tiveram um impacto, incluindo burros, ovelhas, cabras, porcos e cachorros”, explicou Alroy. “Grandes ungulados como cavalos e vacas são importantes porque monopolizam recursos alimentares onde quer que estejam em grandes números.”
Para conduzir a análise, os cientistas desenvolveram um novo método computacional de agrupamento denominado “chase clustering” (agrupamento por perseguição), que contrasta com abordagens tradicionais espacialmente restritas. O método revelou como os animais domésticos conectam sítios arqueológicos separados por milhares de quilômetros, enquanto muitos mamíferos selvagens foram extintos após a chegada dos humanos.
“Ao longo dos últimos 10 mil anos, os humanos supervisionaram a substituição em massa de comunidades nativas de mamíferos por um conjunto muito limitado de espécies domésticas”, destacou Alroy. O professor Barry Brook, da Universidade da Tasmânia e autor principal do estudo, ressalta que os agrupamentos do Pleistoceno se alinhavam com regiões continentais amplas, consistentes com gradientes climáticos e barreiras físicas. Em contraste, os agrupamentos do Holoceno mostraram fronteiras fluidas, indicando que animais domésticos e outros impactos humanos perturbaram as comunidades de fauna além das expectativas relacionadas ao clima.
A transformação variou entre as regiões. Nas Américas, as mudanças foram pronunciadas, enquanto outras áreas demonstraram relativa estabilidade. Durante o Pleistoceno Tardio, cerca de 65% de todas as espécies de megafauna em todo o mundo foram extintas, elevando-se para 72% na América do Norte, 83% na América do Sul e 88% na Austrália.
Parques nacionais perderam grandes mamíferos
As consequências desse processo histórico permanecem visíveis na atualidade. “Parques nacionais nas regiões mais afetadas, como Austrália e Américas, carecem de mais da metade das espécies nativas de grandes mamíferos que teriam estado presentes se não fosse pela ação humana“, disse Alroy.
A Austrália apresenta o pior recorde de extinção de mamíferos entre países desenvolvidos. Desde o assentamento europeu em 1788, pelo menos 28 espécies endêmicas de mamíferos terrestres australianos foram extintas — uma taxa de mais de 10% das 273 espécies endêmicas terrestres. Para comparação, apenas uma espécie nativa de mamífero terrestre da América do Norte continental foi extinta desde o assentamento europeu.
Os pesquisadores utilizaram fontes revisadas por pares e registros de museus, priorizando estudos com datação radiométrica ou estratigráfica para garantir controle cronológico robusto. Artigos que reportavam apenas um número mínimo de indivíduos ou contagens vagas de espécimes foram excluídos, assim como sítios com datação inadequada.
A metodologia incluiu um método hierárquico espacialmente restrito e o novo algoritmo “chase clustering” não restrito. A primeira abordagem ancora os agrupamentos na distância geográfica, enquanto a segunda se baseia apenas na similaridade composicional, permitindo que regiões surjam ou se dissolvam de maneiras inesperadas.
A análise demonstrou que as espécies domesticadas influenciaram as atribuições de agrupamento. Mesmo a expansão moderada de animais domésticos alterou a forma como as comunidades se agrupavam, destacando sua influência ecológica desproporcional. Os achados evidenciam que a modificação de nicho induzida por humanos, além das extinções anteriores de megafauna, remodelou as comunidades de mamíferos em escala global.
Os autores argumentaram que reconhecer esses legados antropogênicos fornece contexto essencial para antecipar como as pressões humanas atuais e futuras podem continuar transformando os ecossistemas. Com a intensificação das pressões ambientais contemporâneas — incluindo mudanças climáticas, perda de habitat e expansão de espécies invasoras —, compreender o impacto histórico da agricultura na fauna global torna-se fundamental para orientar estratégias de conservação e prever transformações futuras nos ecossistemas terrestres.