Quando o nível do mar sobe, as pequenas nações insulares não perdem apenas território — perdem cultura, identidade e o direito de existir. Para esses países, a meta de limitar o aquecimento global a 1,5°C, definida no Acordo de Paris, o principal tratado climático internacional, é mais do que uma ambição: é uma questão literal de sobrevivência.
A Aliança dos Pequenos Estados Insulares (AOSIS, na sigla em inglês) reúne 39 nações que estão na linha de frente da crise climática, enfrentando desde supertufões que destroem 20% da infraestrutura nacional até enchentes que invadem as casas de comunidades tradicionais que vivem próximas do mar. Às vésperas da COP30, em Belém, ainda há questões logísticas não resolvidas — como a oferta de quartos por delegação e a localização das hospedagens que foram oferecidas.
Nesta entrevista, Ilana Seid, embaixadora de Palau na ONU e presidente da AOSIS, explica por que desistir da meta de 1,5°C não é uma opção e como as ilhas seguem sendo a voz moral das negociações climáticas globais.

Como estão os preparativos para a COP30 em Belém? Os problemas de infraestrutura foram resolvidos?
A presidência brasileira ainda está trabalhando para resolver essas questões. Muitos dos problemas que nos preocupam permanecem sem solução, incluindo o custo dos quartos de hotel e as diárias (DSA) que são insuficientes para cobrir nossas despesas. Eles ofereceram apenas 15 quartos para cada uma das pequenas ilhas, o que não é suficiente para abrigar nossas delegações.
Também há problemas de transporte que ainda não foram resolvidos. Se a hospedagem ficar muito distante do local do evento, isso vai criar dificuldades enormes para nossos negociadores. Eles precisam estar no local às 8h da manhã, então se tiverem que sair às 6h e trabalhar até 1h da madrugada, não será uma sessão produtiva para nós. Continuamos em diálogo com a presidência brasileira para tentar resolver essas questões.
Qual é a prioridade das nações insulares nesta COP?
Esta COP tem sido chamada de a “COP das NDCs” (Contribuição Nacionalmente Determinada, na sigla em inglês). No ano passado foi a NCQG (Nova Meta Quantificada Coletiva, na sigla em inglês), focada principalmente no pacote financeiro climático. Agora temos esse pacote definido e os países devem apresentar NDCs alinhadas com a trajetória de 1,5°C. Infelizmente, parece que não estamos no caminho certo para atingir essa meta. Nossa primeira prioridade será realinhar as negociações para que não nos desviemos da trajetória de 1,5°C.
A segunda prioridade é a adaptação. Sabemos que o planeta está ficando mais quente e as pequenas ilhas estão na linha de frente das mudanças climáticas. Realmente precisamos que a adaptação avance por meio de capacitação dedicada e financiamento para a criação dos Planos Nacionais de Adaptação (NAPs, na sigla em inglês), além dos indicadores de adaptação que estão sendo desenvolvidos. Esperamos ter muito mais progresso no programa de trabalho de adaptação.
O que a senhora sente ao ver que poucos países entregaram suas NDCs?
É preocupante. De quase 200 países no mundo, ter apenas cerca de 60 NDCs apresentadas é realmente insuficiente. Sei que a presidência brasileira está pressionando os países para que apresentem suas NDCs antes da COP, especialmente os grandes emissores. A União Europeia é importante nesse aspecto. Tivemos uma reunião com a UE e eles nos disseram que vão apresentar suas NDCs até Belém. Esperamos que apresentem, que seja ambicioso e que esteja alinhado com 1,5°C.
O número baixo é preocupante. Todos assumimos esse compromisso no Acordo de Paris, mas também precisamos colocar uma ênfase muito grande nos principais emissores, porque são eles que realmente vão determinar, com sua mitigação, como será a trajetória do aquecimento global.
Estudos dizem que a meta de limitar o aquecimento global a 1,5°C não é mais realista. Como a AOSIS reage a esse dado?
Para a AOSIS, não é aceitável. Não é uma informação com a qual escolhemos nos envolver ou acreditar. Reconhecemos que não estamos no caminho certo e precisamos corrigir essa rota. Com muitos dos países que são grandes emissores, esperamos que eles acelerem seus planos de transição — e acho que essa é a única forma plausível de realmente manter a meta de 1,5°C.
Também reconhecemos que o progresso não é necessariamente linear. Esperamos que existam pontos críticos de virada que, quando alcançados, acelerem muito mais a ação de mitigação. Já começamos a ver isso com o preço das energias renováveis, que, em muitos casos, já é menor do que o dos combustíveis fósseis. No passado isso não era o caso, e convencer governos a mudar seus planos de eletricidade ou sistemas que dependem de combustíveis fósseis era um argumento muito difícil.
Mas com a produção em massa de painéis solares e sistemas de armazenamento de bateria, já vimos os preços caírem significativamente, e esperamos que isso acelere a adoção dessas tecnologias de forma mais expressiva, mantendo-nos dentro dos 1,5°C. Também existem tecnologias emergentes, como a captura de carbono, que esperamos que, ao final, possam ter desenvolvimentos que nos permitam remover carbono da atmosfera e realmente acelerar esse processo.
Estamos escolhendo ficar com o plano A. Precisamos que todos os países concentrem seus esforços nessa meta. Qualquer coisa que diga que a meta de 1,5°C não está ao alcance é uma distração. Como AOSIS, estamos dizendo que não temos tempo nem energia para responder a essas narrativas. Não precisamos de um plano B. Só precisamos executar o plano A.
De onde vem a força das nações insulares nas negociações climáticas?
As nações insulares são frequentemente reconhecidas como os grupos mais vulneráveis às mudanças climáticas. Por exemplo, no Pacífico temos muitos países que estão ao nível do mar, são países formados por atóis. Quando o nível do mar aumentar, eles correm o risco de ficarem submersos, porque estarão abaixo do nível do mar.
Há uma urgência inerente a muitas nações insulares. Não há como substituir uma cultura: é onde você nasceu, sua terra, suas histórias, e isso não é substituível. Você não pode simplesmente mover alguém para outro lugar e esperar que aquilo seja seu lar. Essa é uma razão muito forte para lutar pelos objetivos do Acordo de Paris. É uma questão de sobrevivência e de preservação de cultura e identidade.
Além disso, a COP frequentemente reconhece que os Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento (SIDS, na sigla em inglês) são a voz moral do mundo. A maioria de nós não é produtor de combustíveis fósseis. Não temos as grandes pressões da indústria que existem em outros países. Isso nos permite olhar o panorama de forma mais holística e dizer que precisamos ser firmes em lutar pelo que é certo para o planeta. Talvez essas sejam as principais razões pelas quais a AOSIS conseguiu ter uma voz tão forte, e continuaremos assim no futuro.
Quais são os impactos concretos que as ilhas enfrentam?
Um deles é o aumento na frequência e na intensidade das tempestades. Por exemplo, em Palau, o meu país, estávamos fora do chamado cinturão de tufões do Pacífico. Mas por causa das mudanças climáticas, estamos vendo mais tempestades e muito mais fortes. Tivemos um supertufão há alguns anos que destruiu 20% da infraestrutura do país. Nossa infraestrutura não foi feita para suportar essas tempestades simplesmente porque elas não existiam antes.
Elas estão acontecendo em uma frequência tão alta que temos que contrair dívidas para nos reconstruir, e então outra tempestade chega e destrói outras coisas. É um ciclo vicioso de tempestades. Também estamos vendo problemas de elevação do nível do mar. À medida que o oceano fica mais quente, a água basicamente sobe acima do nível normal do mar. Em alguns de nossos países, você tem pessoas sentadas em suas cozinhas e o oceano durante uma maré alta literalmente invade e inunda suas casas. Muitas das comunidades nos países insulares vivem na costa porque são vilas de pescadores, então essas comunidades estão sendo destruídas durante as marés altas.
Também enfrentamos problemas graves de segurança hídrica — secas prolongadas seguidas por esse ciclo extremo. Você tem secas muito longas e depois tempestades de chuva extremamente intensas. Às vezes há muita seca e de repente vem uma chuva torrencial tão pesada que inunda as cidades e danifica a infraestrutura. Às vezes nossas estradas desabam completamente. A severidade do sistema hídrico está ficando muito fora de controle.
Por fim, uma das coisas com as quais estamos particularmente preocupados é o quão sensíveis nossos ecossistemas oceânicos são às mudanças climáticas. Uma das razões pelas quais lutamos tanto pela meta de 1,5ºC é que os cientistas estão nos dizendo que se atingirmos o limite de 2ºC, mais de 90% dos recifes de coral vão morrer. Eles são ecossistemas muito frágeis e são a base para grande parte da vida marinha. Quando os recifes de coral morrem, os peixes começam a morrer, e isso afeta toda a cadeia alimentar, incluindo a pesca. É uma questão de segurança alimentar.
Muitos de nós dependemos dos recifes de coral para o turismo. Somos países turísticos, então esse é também um motor econômico que vai desaparecer conforme as mudanças climáticas piorarem. Temos muitas razões pelas quais estamos particularmente preocupados com um planeta em aquecimento, e é por isso que continuamos a lutar para manter o Acordo de Paris vivo.
Diante desse cenário, o que precisa mudar no financiamento climático?
É algo em que estamos trabalhando coletivamente e não é uma questão fácil. Vimos que a Assistência Oficial ao Desenvolvimento (AOD) está caindo em muitos orçamentos nacionais. Precisamos ser criativos com a AOD que existe. Durante a NCQG, os países desenvolvidos concordaram com um pacote financeiro de 300 bilhões de dólares que precisa ser escalado para 1,3 trilhão.
Para nós, nas pequenas ilhas, o principal problema é o acesso ao financiamento. Não precisamos de grandes volumes de recursos porque somos países muito pequenos. Mas como a arquitetura do sistema financeiro global é tão complicada, temos muita dificuldade para acessá-lo. Se um país leva cinco anos para obter financiamento climático, ninguém vai querer buscar esse recurso, porque todos estamos inseridos no ciclo político. Se você não consegue financiamento para criar um projeto, você não será reeleito.
A senhora participou da pré-COP, realizada em Brasília. Qual foi a sua impressão?
Podemos dizer que o Brasil tem sido um anfitrião muito acolhedor e tudo aconteceu de forma muito tranquila. Tivemos muito engajamento com ministros de vários países ao redor do mundo e muitas reuniões bilaterais. Até agora estamos muito satisfeitos com a forma como as reuniões estão sendo conduzidas.
Estamos tentando encontrar maneiras concretas de avançar nos itens da agenda ou em questões que são um pouco mais complicadas antes da COP. Certamente tivemos muitas reuniões produtivas e algumas reuniões muito difíceis também. Reconhecemos que o clima geopolítico é desafiador. Mas foi muito positivo ouvir que os países estão comprometidos com as metas do Acordo de Paris e que o multilateralismo continua vivo.