A cultura é um direito humano e ferramenta essencial para enfrentar a crise climática nas favelas. A defesa é de Natália Cunha, diretora do Museu das Favelas, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, gerido pelo Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG).
“A cultura precisa estar no centro do desenvolvimento, inclusive para enfrentarmos a crise climática”, afirma Natália, em entrevista ao IstoÉ Sustentável. Para ela, espaços culturais têm um papel fundamental na discussão sobre racismo ambiental, garantindo protagonismo de comunidades historicamente invisibilizadas.
O museu, que completa três anos em novembro, nasceu como espaço de memória e resistência. Com exposição de longa duração e curadoria coletiva que utiliza verbos como “existir”, “sonhar” e “morar”, ele articula debates que conectam cultura, memória e justiça climática. O museu já recebeu projetos sobre clima e trouxe a história dos Racionais MC’s, “um dos grupos mais emblemáticos e que conta muito o que é essa cultura, essa vivência, essa identidade do povo da favela”.
Se virologia e criatividade cultural
O conceito de “se virologia” – a arte de se virar – também se manifesta culturalmente no enfrentamento dos impactos do clima. “O artista da favela, o empreendedor da favela, ele se vira. É formado na ‘se virologia’. É aquele que tem que ser criativo o tempo todo por sobrevivência”, define Natália.
A cultura aparece como ferramenta de bem-estar e resistência. A diretora compartilha um exemplo pessoal: seu filho autista não verbal se comunica através da música. “Ele não fala, mas canta. Se eu não apresentar música e dar repertório, ele não interage. Agora ele tem preferências, isso virou uma linguagem”. O exemplo ilustra como a cultura é elemento central da vida humana.
Saberes territoriais e visão decolonial
Para Natália, é fundamental questionar qual conceito de cultura está em jogo. “Que cultura? De quem para quem?”, provoca. “Esses lugares estão muito mais próximos do reconhecimento das suas culturas, porque dependem dela. A cultura não se separa da identidade”.
A crítica à visão eurocêntrica se estende ao debate climático. “Sendo decolonial, é entender o que é a expressão de cada território, de cada grupo. Às vezes a expressão é aquilo que eu trouxe mais o que você trouxe. A gente precisou criar um novo, e tudo bem. Mas cada um deu o que tinha”, defende.
Em viagem à Colômbia, Natália conheceu um projeto cultural que realizou intervenções urbanas, incluindo a rearborização em uma grande comunidade. “Uma das coisas que me impressionou foi: ‘como é arborizado’. Isso é resultado do projeto cultural”, relata. A liderança era uma mulher preta, referência comunitária.
“A gente precisa ver o que tem no entorno, o que já está acontecendo. A inovação está em usar as ferramentas que temos de forma estratégica e eficiente”, avalia. Reconhecer essas soluções locais é fundamental para políticas de adaptação climática que respeitem saberes territoriais.
Dimensão econômica e identitária
A dimensão econômica da cultura é especialmente relevante nas favelas. “O trabalho informal faz parte da realidade da favela, tem muito a ver com trabalho manual, desde a doméstica mas também a artesã”, observa Natália.
Ela compartilha outro caso pessoal: “minha avó não se deu conta da velhice até perder a habilidade de fazer crochê. Aí ela falou: ‘agora eu não enxergo mais’. Faz parte da identidade”. O exemplo mostra como práticas culturais se entrelaçam com subsistência, identidade e qualidade de vida.
Protagonismo na narrativa
O Museu das Favelas se fundamenta em reconhecer que a produção cultural já existe, criar espaços de pertencimento e ser lugar de acolhimento. “Ao mesmo tempo que resgatamos a memória invisibilizada, criamos novas memórias e damos espaço para que nós mesmos contemos essas histórias. Porque até então tem alguém contando que não somos nós”, afirma Natália.
“Nós não podíamos falar. E quando podíamos, faltava informação para além da experiência pessoal. Foi um projeto de sociedade para que nós não tivéssemos acesso a informações”, analisa. Por isso, o registro por múltiplas linguagens é fundamental: “fotografias, textos, artigos, livros, filmes – quantas linguagens podem garantir o registro pelo olhar de quem vive nos territórios”.
Esse legado inclui documentar soluções locais de adaptação climática e estratégias comunitárias de enfrentamento da crise por quem as vive.
Rede cultural pelo clima
O museu integra a rede do IDG, que inclui o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, o Museu das Amazônias, em Belém, e o Paço do Frevo, no Recife. “Apesar do tema de cada um, falamos sobre um modo de fazer, sobre como se relacionar com aquele território”, explica Natália.
O lema comum é “esperançar”. “A gente tanto vai quanto traz. Está sendo orgânico, fundado nessa premissa: sozinhos, não fazemos nada. A rede precisa funcionar”, resume.
Com três anos, o Museu das Favelas se consolida como território de produção cultural e debate climático, onde soluções locais ganham visibilidade e protagonismo de quem vive as favelas.