Adaptação climática: os 100 indicadores para medir resiliência na COP30

Juliana Baladelli Ribeiro, da Fundação Grupo Boticário, explica a importância da aprovação dos indicadores na COP30

Juliana Baladelli Ribeiro, da Fundação Grupo Boticário

Foi durante muitas madrugadas, em meio a documentos com mais de 9.500 sugestões de indicadores climáticos do mundo inteiro, que a bióloga Juliana Baladelli Ribeiro trabalhou para transformar dados brutos em uma ferramenta que pudesse salvar vidas. O resultado desse esforço – uma lista final de 100 indicadores da Meta Global de Adaptação (GGA) – chega à COP30 como uma das principais esperanças para medir e direcionar como a humanidade vai se adaptar aos efeitos das mudanças climáticas. Com a finalização da fase técnica, as nações vão negociar em Belém quais indicadores serão oficialmente adotados para medir o progresso da adaptação climática global.

Como uma das 78 especialistas escolhidas para essa missão, a gerente de projetos da Fundação Grupo Boticário integrou o grupo temático de ecossistemas e ajudou a construir métricas que vão orientar países sobre onde concentrar esforços de adaptação climática. Nesta entrevista, ela revela os bastidores desse processo técnico complexo, explica como os indicadores funcionam na prática e defende que, mais do que números, o que realmente importa é quantas vidas serão salvas com a adaptação à mudança do clima.

A adaptação climática é um dos temas principais da COP30, que acontecerá em Belém. Como surgiu essa urgência?

A adaptação representa um tema recente nas COPs. Por mais que o GGA tenha nascido no Acordo de Paris, ele ficou em segundo plano por anos e as organizações que trabalham com adaptação no Brasil são recentes. O tema começou a ganhar corpo devido aos impactos intensos que se manifestaram a partir do final de 2023.

Os anos de 2023 e 2024 foram atípicos – não por coincidência, mas como consequência das mudanças climáticas. Ultrapassamos o limite de 1,5ºC de aquecimento e 2024 se tornou um ano recorde de calor. Esse cenário trouxe consequências graves para todo o mundo, e no Brasil, todas as regiões e biomas foram afetados. A urgência da adaptação surge dessa realidade que se impõe.

Eu sempre dizia que, infelizmente, precisaríamos sofrer os impactos para perceber a urgência da adaptação. É o que estamos vivenciando agora.

Como foi o processo de refinamento dos indicadores para medir a adaptação em escala global?

O processo começou de forma desafiadora. Recebemos mais de 9.500 indicadores brutos, sem qualquer tipo de filtro ou análise prévia – nem estatística, nem mesmo para eliminar duplicidades. Depois de analisar o material cru, fizemos uma primeira redução para 2.000 indicadores e, na sequência, conseguimos apresentar às partes uma lista de 490 indicadores.

Foi um processo intenso e, em certos momentos, doloroso. O nosso mandato era claro: não poderíamos ultrapassar os 100 indicadores. Isso significou que todos os grupos de trabalho tiveram que renunciar a indicadores que consideravam fundamentais. O grupo de ecossistemas, do qual faço parte, ficou com apenas 10 indicadores para representar toda a complexidade da adaptação de ecossistemas e biodiversidade no mundo.

Poderia dar alguns exemplos concretos de como esses indicadores funcionam na prática?

Um exemplo vem do grupo de saúde: temos um indicador que mede as “mudanças na taxa de mortalidade associada à exposição ao calor”. Este é um fenômeno que está aumentando no mundo, e a tendência é de crescimento. O que esse indicador nos permite fazer é demonstrar como estão sendo as ações de adaptação na redução dessas taxas de mortalidade.

Do grupo de ecossistemas, posso citar um indicador que conta o “número de países que relatam resultados da capacidade adaptativa, resiliência e redução da vulnerabilidade a partir de ações de adaptação baseada em ecossistemas e soluções baseadas na natureza”. Os países já reportam suas ações de adaptação, mas ainda não fazem essa diferenciação para identificar quais dessas ações são soluções baseadas na natureza.

Temos também indicadores relacionados ao patrimônio cultural. Há indicadores sobre como garantir que museus e áreas de patrimônio histórico estejam seguros em relação aos impactos climáticos. É fundamental manter essas informações digitalizadas e garantir que as estruturas físicas estejam protegidas, porque quando você perde uma área dessas, está perdendo todo um registro histórico da humanidade. Isso é irreversível.

Como vocês conseguiram lidar com realidades tão diferentes entre os países na criação desses indicadores?

Nossa solução foi desenvolver um formato em que os indicadores podem ser medidos de forma desagregada, permitindo níveis de detalhamento conforme a capacidade e a realidade de cada país. Por exemplo, um indicador que trata dos planos de adaptação pode ser detalhado por setor específico, por tipo de recurso utilizado, ou ainda por ação implementada.

O mais importante é que todo o sistema é voluntário – são os países que escolhem quais indicadores irão reportar e qual nível de detalhamento conseguem ou desejam adotar. Isso foi fundamental porque existe uma recomendação clara de que não deveríamos criar esforços de reporte para as partes.

Muitos países têm uma estrutura de gestão pública limitada – às vezes é a mesma pessoa que atua como negociador em diferentes temas das COPs, ao contrário do que vemos no Brasil, onde podemos ter negociadores especializados para cada área. Isso é um luxo que a maioria dos países não possui.

Quais são os principais obstáculos políticos que vocês antecipam para a aprovação dos indicadores?

Uma das questões mais sensíveis envolve os indicadores relacionados aos meios de implementação, tema que historicamente representa o maior ponto de atrito nas negociações. Embora os meios de implementação sejam fundamentais para que as ações de adaptação sejam implementadas, as decisões políticas sobre financiamento não devem obstruir a construção destes instrumentos de medição.

Muitos países acabam utilizando essas questões como moeda de troca nas negociações, às vezes até mesmo para outras questões que vão além do próprio GGA. Fazem barganhas políticas – seguram determinada questão aqui para conseguir avanços em outra negociação ali. Isso faz parte da dinâmica política das COPs, mas pode atrasar processos técnicos importantes.

Por que é tão urgente que os indicadores sejam aprovados na COP30?

A necessidade de adaptação é urgente, e os indicadores desempenharão um papel duplo: além de medirem o progresso da adaptação mundial, eles também direcionarão os caminhos que a adaptação deve seguir. Uma vez aprovados e validados pelas partes, eles se tornarão uma bússola para orientar os países sobre onde concentrar seus esforços de adaptação. Temos uma expectativa de que a COP 30 seja histórica nesse sentido, resultando em indicadores de adaptação para medir o progresso mundial e viabilizar o atingimento da meta global de adaptação. 

No final das contas, não importa quais indicadores serão considerados, o que importa é quantas vidas serão salvas. O que importa é se as pessoas vão viver de fato com dignidade, com alegria, com saúde, e não simplesmente sobreviver, tendo que ficar trancadas em casa porque se saírem vão correr riscos de saúde por causa do calor. Temos um cenário perigoso se desenhando em um curto espaço de tempo, de poucos anos, de uma geração.

Qual é a distinção entre adaptação e mitigação nas negociações climáticas?

Quando analisamos a distribuição dos recursos do fundo do clima, fica evidente o desequilíbrio: por muito tempo, praticamente tudo ia para a mitigação, e o direcionamento para adaptação é recente. Isso nos fez perder tempo sem focar adequadamente na adaptação, tratando essas duas áreas como se fossem excludentes.

Aqui na Fundação Grupo Boticário, sempre defendemos uma visão integrada. É urgente reduzir as emissões, promover ações de mitigação, preservar florestas e investir em sequestro de carbono. Contudo, os cenários climáticos já indicam a necessidade de adaptação.

Não há mais tempo para esperarmos pelos resultados da mitigação. Mesmo se conseguíssemos cessar todas as emissões globais hoje, ainda assim precisaríamos colocar a adaptação no centro das nossas discussões e investimentos. Por isso defendemos que todo investimento em desenvolvimento urbano deve incorporar a perspectiva climática desde a sua concepção.

O caso do Rio Grande do Sul é um exemplo prático dessa falta de perspectiva de adaptação?

Sim. Existem fortes indícios de que eventos climáticos extremos similares podem se repetir com maior frequência. No entanto, ao observarmos as áreas que estão sendo reconstruídas, constatamos que a grande maioria não está incorporando a perspectiva climática. Este padrão é mundial. Áreas devastadas são reconstruídas no mesmo local e da mesma forma como eram antes. É quase inevitável que o próximo evento climático extremo cause os mesmos tipos de danos. É um desperdício de recursos que poderiam ser aplicados de forma mais inteligente e segura. Quando obras são realizadas sem a perspectiva climática, elas terão que ser refeitas, novamente, no próximo evento extremo que gerar danos.

Quais são as principais soluções de adaptação?

Na Fundação Grupo Boticário, colocamos ênfase nas soluções baseadas na natureza. Na lista de 100 indicadores, três são específicos sobre esse tema. Defendemos o conceito de “cidade esponja”, a ideia de que as cidades precisam ser projetadas para acomodar os excessos de chuva, ao invés de canalizá-los para outros lugares.

Há diversas medidas que podem ser combinadas para tornar as cidades mais resilientes: jardins de chuva; parques lineares nas margens dos rios, que funcionam como amortecedores das enchentes; parques urbanos com lagos que podem se encher durante chuvas intensas e depois retornar a água aos rios. Essas soluções oferecem múltiplos benefícios: contribuem para a conservação da biodiversidade urbana e melhoram o bem-estar da população. Ter um parque próximo de casa melhora tanto a saúde física quanto mental das pessoas.

Mas temos que pensar também na arborização urbana de forma inteligente. O que vimos recentemente em São Paulo com mais um temporal devastador mostra como precisamos repensar nossas cidades. Precisamos de árvores nas cidades porque elas reduzem as ondas de calor, mas essas árvores têm que ser sadias e seguras para a população. A arborização é fundamental para a adaptação, mas precisa ser planejada e mantida adequadamente.

Como as mudanças climáticas afetam a saúde da população?

As ondas de calor causam mais mortes no mundo do que outros impactos climáticos, e muitas vezes essas mortes nem sempre são associadas às mudanças climáticas nos registros oficiais. No Brasil, várias cidades estabelecem correlações entre o aumento das temperaturas e o aumento dos atendimentos nos postos de saúde por doenças relacionadas ao calor extremo: AVC, infarto, crises hipertensivas.

Temos também o crescimento de doenças vetoriais relacionadas às mudanças nos padrões de chuva e temperatura, como a dengue e a malária, que se expandem para regiões onde antes eram inexistentes. A dengue é um caso concreto: ela não existia em Curitiba, por exemplo, e agora se espalha pela região Sul, trazendo impactos econômicos para as famílias e para o sistema de saúde.

Nesse contexto, a distribuição da vacina da dengue, por exemplo, especialmente para as populações mais vulneráveis, representa uma ação de adaptação climática. Algumas empresas consideram fornecer a vacina para seus funcionários, para evitar afastamentos prolongados do trabalho.

Que desafios específicos o Brasil enfrenta em termos de adaptação?

Um relatório recente da Agência Nacional de Águas mostrou uma projeção de perda de 40% na disponibilidade hídrica do país até 2040. Isso não representa apenas escassez de água para consumo, estamos falando de uma ameaça à nossa produtividade agrícola e à nossa capacidade de geração de energia elétrica.

Ignorar essa projeção seria irresponsável. Se eu tivesse que escolher uma prioridade para o Brasil, seria a proteção dos ecossistemas que promovem e garantem a produção de água no país, pois isso viabiliza todas as outras atividades econômicas e sociais.