O Sistema Cantareira está secando. Operando com apenas 20% de sua capacidade — o menor patamar desde a crise hídrica de 2014 e 2015 —, o principal reservatório da Região Metropolitana de São Paulo está no limite. Se o cenário não melhorar até o fim de dezembro, o sistema entrará na Faixa 5 (Especial), a mais restritiva prevista na regulamentação. O Alto Tietê, que abastece 4,5 milhões de pessoas, está em situação ainda mais delicada: tem 18% do volume útil.
“Estamos em um cenário de risco hídrico. Quando temos só um quarto da reserva e a chuva, se vier, será somente até março, precisa chover muito para termos uma recuperação mínima. Há uma luz amarela piscando”, afirma Samuel Barreto, do comitê gestor do Observatório das Águas.
O problema vai além de um verão seco. A precipitação em novembro ficou 30% abaixo da média histórica, e mesmo as chuvas recentes não reverteram a queda dos reservatórios. Dados da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) revelam algo mais preocupante: nos últimos 30 anos, há tendência consistente de redução nos níveis do sistema. Não se trata de azar climático, mas de um novo padrão que veio para ficar: as mudanças climáticas.
Modelagens indicam que, mesmo que o volume anual de chuvas se mantenha, a distribuição será cada vez mais irregular: longos períodos de estiagem seguidos por tempestades torrenciais. “Estamos falando dos extremos, que são cada vez mais frequentes”, observa Guilherme Karam, gerente de economia da Biodiversidade da Fundação Grupo Boticário, que coordena o movimento Viva Água. Segundo ele, cerca de 40% das bacias hidrográficas brasileiras enfrentam algum nível de restrição hídrica.
A memória mais recente desse tipo de colapso é a crise de 2014 a 2015, a pior da história de São Paulo. O Cantareira chegou a operar com 5% da capacidade, forçando a Sabesp a usar pela primeira vez o “volume morto” — reserva técnica abaixo do nível das comportas. A população enfrentou racionamento severo, com interrupções no abastecimento que duravam horas. Bairros inteiros ficaram sem água, moradores estocavam galões e caminhões-pipa viraram cena comum pelas ruas das cidades. Municípios do interior, como Itu, decretaram emergência. A estiagem foi 50% mais intensa do que a pior seca registrada até então, na década de 1950. O episódio expôs as fragilidades do sistema: falta de planejamento, infraestrutura defasada e ausência de integração entre os reservatórios.
Pressão urbana e degradação ambiental agravam escassez
Crises hídricas não acontecem de repente. Elas se constroem ao longo de décadas, como um resultado de alterações nos padrões de chuva, degradação dos mananciais e avanço da cidade sobre áreas que deveriam estar protegidas. No Cantareira, uma das principais ameaças é a pressão imobiliária. “Com os condomínios chegando cada vez mais, o zoneamento muda e a área urbana avança sobre a área rural. Com isso, os regramentos são diferentes e a perda de natureza se torna muito mais frequente”, alerta Karam.
A natureza funciona como uma aliada contra a escassez. Karam cita um exemplo do Paraná para ilustrar como isso acontece: durante a estiagem de 2020 em Curitiba, microbacias com cobertura vegetal acima de 50% mantiveram a vazão dos rios praticamente estável, com queda de no máximo 10%. Nas áreas degradadas, a vazão despencou pela metade. A vegetação age como uma esponja. “O solo, as raízes, a biomassa, retêm água e vão soltando gradativamente para o sistema”, explica. O problema é que reconstruir essa esponja natural leva tempo, com estimativas que indicam a necessidade de pelo menos cinco anos para que o solo comece a reter água de fato.
Ao mesmo tempo, há caminhos que não passam por plantar árvores. Karam menciona programas de agricultura sustentável que ajudam produtores a cuidar do solo, evitando deixá-lo exposto e construindo barragens e curvas de nível. O ecoturismo também entra na conta: a região do Cantareira, próxima à capital e com paisagem preservada, tem opções de turismo de natureza, ainda incipiente, que poderia ganhar força. “Isso faria com que proprietários rurais entendessem que o turismo vinculado à agricultura sustentável também pode trazer renda e evitaria que vendessem suas terras para condomínios”, afirma. A lógica é criar valor para quem vive na zona rural, de modo que preservar faça mais sentido econômico do que desmatar. O movimento Viva Água apoia municípios a implementar o pagamento por serviços ambientais (PSA), prática que remunera quem protege nascentes e matas ciliares.
Enquanto essas soluções amadurecem, as medidas de curto prazo precisam ser acionadas para evitar o pior cenário. A principal estratégia em vigor é a redução da pressão noturna na rede por 10 horas diárias. Contudo, o efeito colateral é que a água demora mais para chegar às periferias e penaliza a população mais vulnerável. “Precisamos de um plano de contingência para minimizar esses impactos, principalmente para essa população e para áreas importantes, como hospitais”, pondera Barreto. Se a seca apertar, as medidas para lidar com a crise podem incluir os bônus para quem economiza e as multas para quem consome demais — medidas que São Paulo conhece desde 2014.
Especialistas pedem ação permanente e plano de contingência para 2026
Rios poluídos escancaram um descaso estrutural e uma solução ao alcance da intenção de cuidar da natureza. “Temos o Rio Pinheiros, o Rio Tietê, a Represa Billings. Se estivessem limpos, poderiam atender à segurança hídrica da região metropolitana”, aponta Barreto. São mais de 114 mil quilômetros de rios comprometidos no Brasil. A despoluição de corpos hídricos é uma ação que não se resolve da noite para o dia, mas precisa começar a ser implementada.
Para Karam, a saída passa por abandonar o impulso de resolver todos os problemas urbanos com concreto. “Dada a emergência climática, temos que pensar em um bloco de soluções. Investir na natureza com o olhar de longo prazo e na infraestrutura cinza com o olhar de curto prazo”, defende. As campanhas de “fechar a torneira”, embora bem-intencionadas, respondem por uma fatia pequena do desperdício. “O Brasil perde 40% da água captada na distribuição para os consumidores, quando a ONU recomenda no máximo 15%”, lembra.
A crise se desenrola às vésperas de um ano eleitoral. Em 2014, a disputa política travou decisões importantes. “Essas medidas de contenção têm que estar disponibilizadas em um plano de contingência com antecedência”, alerta Barreto. Por outro lado, Karam enxerga oportunidades: “sempre é uma chance de colocar na pauta as propostas relacionadas à segurança hídrica”.
Barreto costuma citar uma frase que ouviu de uma senhora do semiárido: “a primeira coisa que a chuva faz é lavar a memória da seca”. A provocação serve de alerta. Com os reservatórios minguando, o clima mais instável e uma eleição no horizonte, São Paulo tem uma escolha: continuar correndo atrás do prejuízo ou se antecipar ao próximo ciclo de escassez.