Imagine receber dinheiro não por apagar um incêndio, mas por nunca ter deixado ele começar. É essa a lógica que o Brasil levará à COP30, em Belém: o Tropical Forest Forever Facility (TFFF) inverte o jogo do financiamento florestal. Em vez de pagar países para reduzir desmatamento, o fundo remunera quem mantém suas florestas tropicais de pé. A expectativa? Mobilizar até US$ 125 bilhões.
Para Garo Batmanian, diretor-geral do Serviço Florestal Brasileiro, a proposta preenche uma lacuna crítica dos mecanismos atuais. “A maioria dos fundos remunera pela redução do desmatamento em relação a uma base histórica”, explica. “Mas quando se chega ao desmatamento zero, nada acontece e o problema não está resolvido. Estamos criando um fundo para recompensar os países que já controlam seu desmatamento e mantêm taxas abaixo da média mundial”, completa.
Batmanian enfatiza que, embora o Brasil lidere a proposta, o TFFF não é um fundo para a Amazônia ou para o Brasil. “É um fundo para o mundo. Qualquer floresta tropical pode ser beneficiada”, diz. A projeção é que, quando o fundo atingir US$ 125 bilhões, seja possível gerar um pagamento de US$ 4 por hectare de floresta preservado, aplicados os descontos por desmatamento.
A mudança na lógica de remuneração é estrutural: o TFFF paga por hectare de floresta mantido, não por tonelada de carbono evitada. Como condição para integrar o fundo, esses recursos precisam ser destinados a programas governamentais — de iniciativas de bioeconomia a programas sociais vinculados ao meio ambiente, passando por pagamento de serviços ambientais ou outras ações implementadas em cada país.
Carlos Rittl, diretor de Ciências da Conservação da Wildlife Conservation Society (WCS), uma das organizações que assessora tecnicamente o governo brasileiro, contextualiza o problema que motivou a criação do fundo. “A maior parte das florestas em pé do mundo e todo o benefício que elas geram para o clima, para as comunidades e para a biodiversidade não é objeto de instrumento de financiamento em escala. O TFFF foi desenvolvido para preencher essa lacuna”, explica.
A proposta nasceu de uma articulação entre países do Sul Global. O desenho foi construído com 11 nações: Brasil, Colômbia, República Democrática do Congo, Gana, Indonésia e Malásia (países florestais), além de França, Alemanha, Reino Unido, Noruega e Emirados Árabes Unidos (potenciais investidores).
O processo incluiu validação política em fóruns regionais. Batmanian relembra as etapas: “apresentamos na cúpula da Amazônia em Bogotá, onde todos os presidentes assinaram uma declaração apoiando o TFFF. Houve uma reunião da Bacia do Congo onde seis países também declararam apoio”. O fundo pretende abranger até 74 países com contextos distintos, o que exigiu encontrar um equilíbrio que considerasse diferentes realidades. “Estabelecemos parâmetros que permitem flexibilidade, mas não são um vale-tudo”, afirma o diretor do Serviço Florestal.
Investimento permanente em vez de doações
A principal inovação do TFFF está na fonte de financiamento. Batmanian aponta a limitação dos modelos tradicionais. “Os fundos existentes são baseados em doações, inclusive o Fundo Amazônia. Mas o volume de doações não cresce significativamente, enquanto a demanda não diminui e esses recursos são destinados para diferentes causas, como surtos de doenças e ajuda humanitária”, diz.
O TFFF propõe captar US$ 25 bilhões em investimentos de países — não doações — que servirão como garantia para emitir até US$ 100 bilhões em títulos no mercado financeiro. Segundo Batmanian, o mecanismo funciona como um investimento de baixo risco que atrai um perfil específico de investidor. “O investidor coloca o dinheiro e recebe uma taxa de retorno baixa, mas segura. O fundo usa esse capital para fazer investimentos. O lucro é usado para pagar, anualmente, os países que atendem os critérios de elegibilidade”, explica.
Uma vez capitalizado, o fundo gera receita de forma contínua, transformando o horizonte de planejamento. “Ações de conservação precisam ser mantidas por vários anos, nosso planejamento é feito em décadas”, argumenta Batmanian. Rittl reforça que essa arquitetura resolve dois problemas simultaneamente. “Não é só a questão do volume financeiro. Existe também a questão da previsibilidade. Desde que o país mantenha os critérios de elegibilidade, ele receberá recursos todos os anos”, afirma.
Márcio Sztutman, diretor executivo da The Nature Conservancy (TNC) Brasil, dimensiona a proposta. “O TFFF pretende levantar 125 bilhões de dólares para vários países com florestas tropicais. O Brasil seria um dos grandes beneficiários”, diz.
Critérios e incentivos
Para receber recursos, os países precisam manter a taxa de desmatamento abaixo de 0,5% ao ano em comparação ao período anterior, com tendência de queda ou estabilidade. Mas o fundo vai além de estabelecer limites — ele cria incentivos progressivos. O mecanismo funciona por meio de descontos: para cada hectare desmatado, o país perde o direito de receber recursos por 100 a 200 hectares de floresta. “Se a taxa continuar diminuindo e chegar ao desmatamento zero, não haverá desconto nenhum e o país receberá mais dinheiro”, detalha Rittl.
O monitoramento vai além das áreas elegíveis. Rittl exemplifica o caso brasileiro. “No Brasil, monitora-se a Amazônia e a Mata Atlântica, as nossas florestas tropicais, para a avaliação do TFFF, mas também haverá o acompanhamento do Cerrado. Se o desmatamento cair na Amazônia, mas subir muito no Cerrado, pode haver suspensão de pagamento.” A intenção é evitar que a redução em uma região desloque a pressão para outra.
Esse desenho pode criar incentivos econômicos para decisões de conservação que antes não tinham peso financeiro. Batmanian traz um exemplo prático: “o Brasil tem milhões de hectares de áreas públicas sem destinação. Definir essas áreas para conservação pode ganhar uma lógica financeira que hoje não existe. Proteger essas áreas contribui para manter a taxa de desmatamento baixa, o que gera retorno em uma escala que não vimos antes”.
Povos indígenas no centro da governança
Uma das mudanças mais estruturais do TFFF está no reconhecimento do papel dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. O fundo estabelece que, no mínimo, 20% dos recursos sejam destinados diretamente a esses grupos.
Sztutman destaca o avanço na forma de acesso aos recursos por populações historicamente marginalizadas. “As discussões incorporam a demanda de que povos indígenas tenham acesso não por dezenas de intermediários, mas por suas próprias organizações. Já existem fundos geridos por indígenas, com funcionários indígenas, com governança indígena”, afirma.
O processo de construção do mecanismo contou com participação direta das organizações indígenas. Para Rittl, essa inclusão desde o início representa uma ruptura com padrões anteriores. “Dessa vez, povos indígenas sentaram na mesa para dizer: ‘Para eu fazer parte disso, quero que isso fortaleça os direitos de povos indígenas desde o início, e quero assegurar acesso direto a esses recursos'”, comenta.
Complementaridade no financiamento climático
O TFFF não compete com mecanismos existentes, como o REDD+ ou mercados de carbono. Ele foi desenhado, justamente, para preencher outro espaço. A diferença é conceitual. “O REDD+ visa conter o desmatamento na fronteira das florestas. Você tem redução de emissões, e essa redução é remunerada. O TFFF não é baseado em carbono. Não estou precificando carbono, estou precificando hectare”, explica Rittl.
Sobre o papel no financiamento climático global, o TFFF também não é uma solução única. “Se dividirmos os 25 bilhões de recursos públicos por 30 anos, dá menos de 1 bilhão por ano. O TFFF não representa nem 1% da nova meta de financiamento climático”, diz.
Mas o impacto pode ir além dos números diretos. Para Rittl, o modelo pode inspirar novas abordagens. “A grande contribuição é ajudar a pensar: como você casa investimentos públicos e privados de maneira que gere impacto?”, argumenta Rittl. Batmanian complementa o raciocínio situando o fundo no contexto geopolítico atual. “Em um momento em que países em desenvolvimento cobram responsabilidade de países desenvolvidos, e países desenvolvidos alegam dificuldades fiscais, o TFFF ajuda a destravar essa conversa”, afirma.
A expectativa é anunciar os primeiros países parceiros durante a COP30, que será realizada em novembro, em Belém. O Brasil sinalizou o investimento de US$ 1 bilhão no TFFF. Batmanian projeta uma visão de longo prazo. “Nossa meta é ver 1 bilhão de hectares de florestas tropicais sendo recompensados pelo TFFF. No primeiro momento, aqueles que já fazem seu dever de casa serão recompensados. Aqueles que não fazem vão perceber que há incentivo para manter a floresta em pé”, diz.