Congresso marcha rumo ao retrocesso ambiental em ano de COP-30

Senado aprova projeto que afrouxa acesso a licenciamento ambiental, favorece agro e mineradoras e facilita exploração de petróleo na Margem Equatorial

Congresso marcha rumo ao retrocesso ambiental em ano de COP-30

Era fim de tarde do dia 21 de maio, quando o Davi Alcolumbre entrou no plenário e sentou na sua cadeira de presidente do Senado. Ao reabrir a sessão, resolveu agilizar os trâmites e passar o trator para aprovar as indicações de nomes para embaixadas de 12 países. A pressa era clara, Alcolumbre tinha como foco o projeto que pode beneficiar seu capital político nos próximos anos: as mudanças no marco de licenciamento ambiental.

A proposta, criada em 2004, afrouxa regras ambientais e favorece negócios de baixo e médio risco ambiental, como barragens de rejeito e obras do governo federal. O texto também cria um modelo de declaração de auto consentimento, em que o empresário poderá realizar uma obra apenas afirmando que terá um baixo impacto ao meio ambiente.

O projeto ainda cria novas modalidades de licenciamento, que podem beneficiar o governo federal e, principalmente, Alcolumbre. Uma delas é a Licença Ambiental Especial (LAE), com duração de 12 meses, que libera obras emergenciais ou estratégicas para o governo. O tema é um dos principais pontos de impasse entre o Congresso Nacional e os ambientalistas.

A licença, capitaneada por uma emenda apresentada pelo presidente do Senado, deve beneficiar a exploração de petróleo na Foz do Amazonas, no Amapá. A ideia é avalizada pelo Palácio do Planalto, pressionado por Davi Alcolumbre e pela ala econômica, mas na contramão do que prega o Ministério do Meio Ambiente.

Entre idas e vindas – e críticas internas – o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) deu o aval para a exploração de petróleo na região da Bacia do Amazonas, entre o Amapá e o Pará. Internamente, o governo vê como chance de encontrar um “novo Pré-Sal” com a geração de milhares de barris de petróleo e gás natural na região.

“Esse projeto retira regras ‘do meio do caminho’, limitando os instrumentos de fiscalização que garantem o equilíbrio entre o interesse privado de um empreendedor e o impacto coletivo de suas obras. Projetos de médio e grande porte são os mais afetado”, explica Márcio Astrini, diretor-geral do Observatório do Clima.

O setor petroleiro não deve ser o único beneficiado. Construtoras, mineradoras e o agronegócio estão entre os maiores beneficiados pelo projeto. Barragens de rejeito, por exemplo, entraram na categoria de médio risco ambiental, que teria regras afrouxadas pelo projeto. Nos últimos anos, Minas Gerais foi palco de dois estouros de barragens (Brumadinho e Mariana), deixando 291 mortos e um rastro de destruição pelas cidades e poluição que atingem os moradores até hoje.

Responsável por 75% das emissões de gases do efeito estufa, de acordo com um levantamento do Observatório do Clima, o agro também terá regras afrouxadas caso o projeto siga adiante no Congresso Nacional. Pelo texto aprovado pelos senadores, o setor poderá usar o termo auto declaratório para atestar o baixo impacto das atividades ao meio ambiente.

Para além dos setores, o governo federal pode pôr fim a um impasse que se arrasta desde 1988, mas que ganhou força no começo do segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT): as obras na BR-319. A rodovia liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO) e é a única ligação terrestre entre a capital amazonense e o resto do país.

Lideranças do estado defendem a pavimentação da região, hoje sobre terras e pedras em grande parte dos 845 quilômetros de pista. Ambientalistas apontam forte impacto em um dos poucos locais do país com mata nativa e no coração da Selva Amazônica.

“Ele beneficia empreendimentos de alto impacto, como a BR-319. O maior impacto dessa estrada não é o asfalto, mas o que ele facilita: grilagem, desmatamento, madeira ilegal. O projeto ignora esses custos associados, como se colocasse uma venda nos olhos do licenciador”, afirma o diretor do Observatório do Clima.

É hora de passar a boiada

As mudanças colocadas no projeto, para ambientalistas, é uma “passada de boiada” no meio ambiente brasileiro. O termo faz referência a Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente no governo Jair Bolsonaro (PL), que sugeriu o avanço de pautas antiambientais no Congresso Nacional durante a pandemia de Covid-19.

“O projeto faz parte de um pacote de retrocessos que combatemos há anos. Já organizamos eventos para paralisar a votação desses projetos, incluindo o Marco Temporal. Agora, essa ‘boiada’ está avançando no governo Lula”, ressalta Astrini.

“Esse projeto, se aprovado, representa um verdadeiro libera geral, um enfraquecimento sem precedentes dos controles e normas ambientais, o que terá como consequência o aumento do desmatamento e da degradação ambiental e nas pressões sobre povos e comunidades tradicionais”, completa Alice Dandara, chefe da divisão ambiental do Instituto Socioambiental (ISA).

No meio do cabo-de-guerra, o Ministério do Meio Ambiente tenta articular o retardo do projeto na Câmara dos Deputados para evitar a aprovação e, de quebra, uma crise de imagem em meio às organizações para a COP-30, conferência climática promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), marcada para novembro em Belém (PA).

A ministra Marina Silva entrou em campo para negociar o congelamento do texto com o presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB). Na sala da presidência e com um grupo de deputados ao lado, ela ouviu de Motta que o projeto não será votado até o consenso sobre a pauta.

Em nota, a pasta comandada por Marina elenca diversos dispositivos críticos e classifica o projeto como uma desestruturação do regramento ambiental e que descoordena as ações entre União, estados e municípios.

“O PL é, por fim, omisso em relação à crise climática, sem sequer mencionar a questão em seu conteúdo, fazendo com que o processo de licenciamento desconsidere esse tema crucial”, afirma o ministério.

Outro ponto de crítica nos bastidores da pasta é a entrega do projeto para a senadora Teresa Cristina (Progressistas-MS), uma das líderes da bancada ruralista no Congresso Nacional, a maior interessada no tema. A tese do grupo é que a desburocratizar o licenciamento ambiental fortalecerá o agro, aumentando o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil.

“O avanço da pauta anti ambientalista reflete até certo ponto a legislatura que temos no Congresso hoje. Temos a presença de setores ruralistas atrasados e negacionistas que ainda não entendem que, sem floresta, sem água, sem áreas protegidas, toda a agropecuária, inclusive os grandes produtores rurais, também serão diretamente afetados com as mudanças climáticas”, explica Alice.

E o Lula…

Mesmo ainda travado na Câmara dos Deputados, os bastidores dão como certa a sanção, com poucos vetos, de Lula ao projeto quando chegar ao Palácio do Planalto. Pressionado pela base frágil no Congresso, o petista não deve ir para o enfrentamento contra Alcolumbre, que é quem sustenta o governo no Legislativo.

Mas a possibilidade de sanção do projeto vai na contramão da agenda climática prometida pelo presidente da República para a COP-30. Para o evento, o governo quer convencer países ricos a criar um fundo para financiar a preservação de florestas.

“Mas a lógica política não respeita essa questão [ambiental]. Primeiro, porque muitos no Congresso veem o meio ambiente como um inimigo. Segundo, para a oposição, é uma forma de constranger o governo federal, que liderará a COP-30. Eles avançam uma agenda de retrocesso e ainda colocam o governo para se explicar internacionalmente”, critica Márcio Astrini.

“Qualquer decisão terá um custo político. E talvez um custo político internacional também. Se optar por aprovar o PL ou fazer vetos simbólicos sem real impacto, sim, porque ele se apresenta como líder climático”, completa.

Ao mesmo tempo em que o governo tenta agradar ao Congresso, a sanção do projeto pode enviar sinalizações contrárias às ações do próprio Lula. Desde que assumiu o seu terceiro mandato, o petista se esforça para melhorar a imagem do Brasil no cenário internacional, principalmente após as cobranças feitas por França e Noruega para a redução de desmatamento durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL).

“A sinalização que o Brasil dá com a aprovação desse projeto é de que estamos caminhando na contramão das nossas metas de redução de emissão de gás carbônico, de redução sobre o desmatamento e de combate às mudanças climáticas”, avalia a diretora do ISA.

“Isso mostraria um descompasso entre o compromisso do presidente Lula com a agenda ambiental, reafirmado em diversos eventos internacionais, onde o Brasil tenta avançar com compromissos mundiais pelo clima e o que ocorre na prática da política pública brasileira”, completa.

STF a postos

Como já é de praxe na Praça dos Três Poderes, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) já estão atentos às movimentações do projeto no Congresso Nacional, esperando a judicialização do texto. Um dos dispositivos questionados é o trecho em que libera obras que são de interesse nacional.

A judicialização do projeto, por sua vez, pode voltar à tona a crise entre o Legislativo e o Judiciário. Nos últimos anos, decisões da Suprema Corte sobre projetos tramitados na Câmara e no Senado azedaram as relações entre os Poderes. Um exemplo é o Marco Temporal, que demarca terras indígenas, que foi aprovado pelo Congresso Nacional com retrocessos. A proposta chegou a ser vetada por Lula, mas os congressistas derrubaram o impedimento, provocando um impasse que chegou ao STF. Quase um ano e meio depois, o processo está em ritmo de conciliação sob o comando do ministro Gilmar Mendes.

Para especialistas, a deixar a cargo do governo a decisão daquilo que é ou não prioritário pode acarretar em obras “desnecessárias”, provocando impactos significativos ao meio ambiente.

“Se isso passar sem veto presidencial, no dia seguinte estará no STF, como ocorreu com o Código Florestal, que levou uma década para ser decidido. A judicialização é quase certa, dada a oposição do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério Público”, afirma Édis Milaré, advogado especialista em direito ambiental.

“Liberar o licenciamento para obras militares, por exemplo, é um absurdo. Não sabemos que tipo de empreendimento será – pode envolver componentes radioativos ou até uma bomba atômica, exagero à parte. Ser militar não pode significar isenção automática”, completa.

Ao mesmo tempo, o recurso à Suprema Corte, caso o projeto seja aprovado, pode evitar a crise de imagem do Brasil no cenário internacional. Para o advogado, o solavanco da medida abre a porteira para retrocessos ambientais.

“Essa emenda fala em ‘interesses estratégicos nacionais’, mas seu contexto político é delicado. O Congresso deve refletir muito antes de aprová-la, pois levar isso para a COP-30 seria péssimo para o Brasil. Transmite a mensagem de que as portas estão sendo abertas para retrocessos”.

“Acredito que, estrategicamente, o projeto pode emperrar justamente para evitar esse constrangimento internacional. Aprovar essa emenda seria um tiro no pé, criando solavancos desnecessários em um momento em que o país precisa mostrar liderança ambiental”, completa Milaré.