Marcele Oliveira não aceita que “na sua vez vai dar errado”. Aos 26 anos, ela carrega uma responsabilidade de peso: ser a segunda Jovem Campeã Climática do mundo, representando o Brasil na COP30, que acontece em Belém, no Pará. Sua expectativa para a conferência vai além das negociações dentro das salas fechadas. “Para mim, o mais importante é que a COP30 seja a maior mobilização com justiça climática do mundo para a nossa geração”, afirma. Ela quer que o legado do evento transcenda os acordos diplomáticos e chegue às periferias, aos territórios e às escolas. “Só vou saber se tivemos sucesso no ano que vem, quando olharmos para trás e vermos que conseguimos continuar em um processo formativo com tantos movimentos de juventude.”
A trajetória de Marcele até essa função começa nos trajetos diários de ônibus, trem, metrô e barca que ela precisava pegar para atravessar o Rio de Janeiro até Niterói, onde fez faculdade. Nascida e criada em Realengo, bairro da zona oeste carioca, ela é “filha e neta de mulheres que se chamam Maria, de mulheres negras”. Ao estudar em outros bairros, passou a perceber as desigualdades da cidade: não só de classe, mas a ausência de árvores, sombras e espaços de lazer no caminho de ida e volta para casa. Era uma injustiça que ela ainda não sabia nomear como racismo ambiental.
O despertar político aconteceu na faculdade de Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, quando descobriu a luta pelo Parque Realengo Verde. Ao pesquisar sobre o bairro para a sua tese de conclusão de curso, ela só encontrava notícias sobre o massacre na Escola Tasso da Silveira, que aconteceu em 2011. “As atividades culturais, as expressões artísticas, os espaços que existiam em Realengo não eram notícia”, lamenta. Marcele entrou no movimento pela criação do parque e, ao debater o assunto com outros jovens, descobriu que a prefeitura autorizava o descarte de lixo tóxico no terreno que deveria virar área verde. “A gente conseguiu confirmar que era um crime ambiental e um caso de racismo ambiental”, relata. A mobilização resultou na “Ocupação Parquinho Verde”, com saraus, aulas de educação ambiental e horta comunitária.
Essa experiência abriu seus olhos para conexões mais amplas. “A luta ambiental é uma luta conectada com qualidade de vida, com justiça racial, social, de gênero. Não dá para separar essas questões”, afirma. Desde os 16 anos no mercado de trabalho, sua formação política se deu na prática e nas leituras. Ao pesquisar cultura e clima na faculdade, ela ouviu que os temas não tinham relação. Foi lendo autores como Ailton Krenak e Nego Bispo que descobriu conceitos como “biointeração” — a ideia de viver com a natureza, não apenas em meio a ela. “Sustentabilidade é um conceito desenvolvido a partir dessa ideia de desenvolvimento econômico que a gente não concorda. Na verdade, o que a gente precisa é de uma biointeração”, explica.
O caminho até a COP passou por outras conferências climáticas. Aos 20 anos, Marcele ouviu falar pela primeira vez sobre a ONU e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) enquanto ajudava a organizar a Agenda Realengo 2030. “Foi quando entendi que essa agenda não era de abraçar a árvore na zona sul, mas sim do direito que todo mundo tem de ter acesso à maior tecnologia da nossa vida, que é a árvore, que faz tudo de bom pela gente.”
Ela participou da COP27 como parte de uma delegação de pessoas periféricas do estado do Rio, organizada pela Coalizão Clima e Mudança. Na COP28, integrou o programa de jovens negociadores pelo clima da Secretaria de Meio Ambiente. Na COP29, pesquisou sobre cultura e clima, tema que se tornou sua paixão. “A crise do clima também é uma crise cultural, porque a gente tem uma cultura de destruição vigente”, analisa.
Para Marcele, ser ativista não foi uma escolha, mas uma necessidade. “Cresci vendo meus pais muito ativos na questão da justiça social. Eles não se chamavam de ativistas, mas também faziam a parte deles, distribuíam quentinha, ajudavam os vizinhos. A periferia é muito coletiva.” Essa cultura do mutirão, da ação coletiva como forma de sobrevivência, moldou sua compreensão de ativismo.
Ela faz questão de desmistificar a ideia de que juventude é sinônimo apenas de mobilização e protesto. “A juventude mobiliza muito bem, obrigada, agradeço, mas ela também pode ajudar a construir um futuro melhor, porque é o nosso futuro. Então a gente tem que participar das decisões que vão moldar ele.” O cargo que ocupa foi institucionalizado justamente por mobilizações de juventudes e representa uma conquista coletiva.
A escolha de Marcele para o cargo passou por um processo seletivo rigoroso conduzido pela Secretaria Nacional de Juventude. Era necessário falar inglês, ter participado de outras conferências e compreender as complexidades das negociações climáticas. Mas ela destaca algo fundamental: “Na verdade, os meus amigos me escolheram antes do presidente me escolher. O presidente só olhou e falou: ‘Ah, então tá bom’.” O movimento de juventude se organizou coletivamente para propor como deveria ser essa representação no Brasil.
Uma das principais inovações do mandato brasileiro é ter uma equipe de jovens de todos os biomas do país, não apenas uma pessoa. “No Brasil, a gente existe. A gente fala, a gente cobra, a gente se posiciona. Então, mesmo eu sendo muito legal, eu vou ser cobrada”, reconhece. Foram realizadas plenárias em todos os biomas, elegendo 12 jovens delegados que irão para a COP30 representar seus territórios.
Fora do ativismo, Marcele se define como “uma jovem normal”. Gosta de ler, ouvir podcasts sobre clima, cultura, direito à cidade e, sim, fofocas também. Adora passar tempo com os amigos e no Parque do Realengo, observando as pessoas aproveitarem o espaço que ajudou a conquistar. Ela se descreve como uma pessoa religiosa, embora não frequente a igreja regularmente. “A fé é muito importante. Porque em qualquer contexto religioso, tanto a água, quanto o fogo, quanto a folha, são muito parte das crenças. As comunidades de fé têm um papel essencial na luta ambiental e climática.”
Sobre o futuro, Marcele tem certeza de uma coisa: quer continuar contando histórias. “Muitas juventudes estão sendo profundamente impactadas por todas essas crises e não estão conseguindo ter a possibilidade de contar essa história”, diz. Ela não sabe se seguirá na área de pesquisa ou no desenvolvimento de políticas públicas, mas sabe que quer fazer um mestrado sobre cultura e clima. “Nesse momento, estou preocupada em sobreviver até o final da COP”, brinca.
Seu otimismo não é ingênuo. Marcele reconhece todos os desafios e a gravidade da crise climática, mas se recusa a aceitar o derrotismo. “A gente sabe o que precisa ser feito. Precisa fazer”, afirma. Para ela, a COP30 é o momento do “vai ou racha”, mas as soluções não podem ficar apenas nas salas de negociação. “Uma horta comunitária não precisa de uma negociação para nascer. Começar a separar o lixo não precisa de negociação para nascer.”
A jovem que um dia normalizava chamar o rio de valão hoje é a voz que leva a urgência da periferia para o centro do debate climático global. “Eu não tive escolha entre ser ou não ser ativista. Foi apresentado para mim a necessidade de não normalizar os absurdos”, resume. E conclui: “Quanto mais a gente vai entendendo e compartilhando esse conhecimento, mais a gente vai construindo uma nova geração que não normaliza absurdos, que se manifesta e que constrói alternativas.”