‘Made in Tapajós’: o preço da hidrovia e a disputa pelas águas amazônicas

O Plano Nacional de Logística (PNL 2050), em elaboração pelo governo, é uma oportunidade para planejar o território a partir das pessoas e dos ecossistemas, e não apenas das cargas e dos lucros.

Barco navega no rio Juruá, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari, no coração da Amazônia brasileira - Crédito: AFP
Barco navega no rio Juruá, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari, no coração da Amazônia brasileira Foto: AFP

O avanço das hidrovias na Amazônia tem sido vendido pelo setor privado e defendido pelo governo federal como mais um passo rumo à modernização logística do país. O decreto 12.600/2025, que incluiu os rios Tapajós, Madeira e Tocantins no Programa Nacional de Desestatização, pavimenta a entrega, à iniciativa privada, de três mil quilômetros de rios sob o argumento de reduzir custos e atrair investimentos. Se trata, na verdade, de mais uma aposta na expansão do Arco Norte: rota prioritária para o escoamento de commodities pela Amazônia. 

A medida está longe de ser sustentável: monetiza os rios, consolidando seu uso como mero corredor logístico a serviço de grandes grupos econômicos. Assistimos à disputa pelo usufruto dessas águas, bens de todos nós, e, junto com elas, a entrega da saúde das florestas, das cidades e das pessoas que delas dependem. As políticas construídas dentro de gabinetes estão destruindo vidas na Amazônia.

O caso do Tapajós, que acompanhamos de perto, é emblemático. Desde a instalação, em Santarém, do primeiro porto de soja na Amazônia, no início dos anos 2000, a pressão aumentou. Hoje, já são cerca de 30 portos ativos entre Miritituba e Santarém, além de outros em construção ou em planejamento entre o médio e o baixo Tapajós – uma região cercada por comunidades tradicionais e áreas protegidas. Essa infraestrutura  “Made in Tapajós” chegou acompanhada de especulação imobiliária, inchaço urbano, ausência de planejamento e impactos diretos e indiretos sobre as populações locais. 

O uso intensivo das margens para atividades portuárias e o aumento do tráfego de embarcações afetam diretamente a vida local, desde o equilíbrio ambiental aquático, à pesca artesanal, e ao ir e vir do transporte comunitário, que depende do rio como via de acesso. O turismo também sente os efeitos. Praias como Alter do Chão, em Santarém e em Belterra, sofrem os efeitos da poluição e da sobrecarga de atividades econômicas incompatíveis com o turismo de base comunitária da região.

Os impactos atravessam também a saúde. O pó de soja, contaminado com agrotóxico, polui ainda mais a água e afeta a quem vive ali. As dragagens reviram sedimentos contaminados por mercúrio, rastro dos garimpos que se espalham pelo médio e alto Tapajós. Esse metal pesado contamina as águas e os peixes, ameaçando a saúde das comunidades ribeirinhas e dos povos indígenas. 

Enquanto setores privilegiados são ouvidos e atendidos, as leis seguem sendo desrespeitadas no chão dos territórios. O modelo de concessão proposto pelo governo federal ignora a obrigatoriedade da Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI), prevista na Convenção 169 da OIT, que garante que povos indígenas e comunidades tradicionais participem das decisões sobre seus territórios. Sua ausência simboliza a injustiça em curso.

Como as águas que se interligam, os impactos de obras também se conectam. A concessão dos rios amazônicos engrossa outros grandes projetos, como a Ferrogrão, duplicação da BR-163, ampliação de portos em Itaituba e Santarém. Cada nova obra intensifica os danos das anteriores e abre caminho para outros, acumulando degradação ambiental e conflitos sociais, como alertamos em documento enviado ao Ministério dos Portos e Aeroportos e ao Ministério dos Transportes nesta semana.

É urgente repensar o modelo de desenvolvimento na Amazônia. O Plano Nacional de Logística (PNL 2050), em elaboração pelo governo, pode ser uma oportunidade para inverter a lógica: planejar o território a partir das pessoas e dos ecossistemas, e não apenas das cargas e dos lucros. É preciso garantir o diálogo com os povos amazônidas, valorizando modos de vida que há séculos mantêm a floresta em pé e rios vivos. Sem eles, e sem os rios que lhes dão sustento, não há futuro.

*Lucas Tupinambá Vice-presidente do Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns (CITA).

*Johnson PortelaArticulador do GT-Infraestrutura e Justiça Socioambiental e Militante do Movimento Tapajós Vivo (MTV)