Mais de 16 milhões de brasileiros que vivem em favelas enfrentam impactos desproporcionais das mudanças climáticas. Dados revelam que 60% desses territórios não recebem obras de prevenção de riscos climáticos, o que expõe suas populações a vulnerabilidades cada vez maiores diante de eventos extremos como ventanias, enchentes e ondas de calor.
A análise é de Natália Cunha, diretora do Museu das Favelas, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo e gerido pelo Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG). Em entrevista ao IstoÉ Sustentável, ela destaca que as mudanças climáticas “afetam a todos, mas não de maneira igual”. “Na favela é onde vemos o impacto maior acontecer e as chances de recuperação menor”, afirma.
A desigualdade no enfrentamento da crise climática fica evidente nos eventos do cotidiano. Natália exemplifica com as recentes ventanias em São Paulo: “as grandes torres não sofrem impacto, quando muito estoura o vidro da sacada de alguém. Na favela, os telhados vão embora, as casas ficam descobertas quando essa mesma ventania chega lá”.
O perfil demográfico das favelas – majoritariamente composto por pessoas pretas, com redes de apoio fragilizadas pela luta comum de sobrevivência – agrava a situação. Além dos grandes centros urbanos, quilombolas, indígenas e comunidades rurais também enfrentam impactos climáticos sem recursos adequados.
A falta de políticas públicas é um dos principais obstáculos. “O que falta de política pública, o que falta de acesso, o que falta de recurso, o que falta de prioridade”, enumera Natália, destacando que o trabalho do museu passa pela “nomeação e pelo apontamento do que falta”.
Apesar das adversidades, a diretora reconhece a força da solidariedade e da criatividade – que ela chama de “se virologia” – como tecnologias sociais fundamentais. “Se tem um povo que é muito criativo e solidário [é o da favela]. Na hora do caos, na hora da crise, o quanto é forte essa solidariedade. É uma tecnologia social que a gente tem, é uma potência muito mais inovadora do que eventualmente tudo que a tecnologia consegue trazer”, observa.
Impactos invisíveis e saúde mental
Além dos danos materiais evidentes, Natália chama atenção para impactos invisíveis que raramente entram no debate. “Todos esses impactos tiram direitos a coisas muito básicas que não são tema de nenhuma pasta: saúde mental, direito ao lazer, direito ao descanso”, pontua.
A diretora, que é psicóloga de formação, ilustra como as condições desiguais afetam o bem-estar. “A gente vive crises em condições desiguais. Você vai fazendo escolhas e tendo que bancar essas escolhas, fazer essas escolhas darem certo, porque o seu limite, a possibilidade de correr riscos é muito menor do que alguém que está em uma condição privilegiada”, reflete.
Essa desigualdade cria um ciclo difícil de romper. “Se não vem essa onda de solidariedade, se não vem esses encontros, se não vem a troca dessa tecnologia, a gente não sai [da situação]“, alerta.
Mobilização para a COP30
Com a realização da COP30 em Belém, o Museu das Favelas integra uma rede de iniciativas que conectam a questão climática à realidade das comunidades vulneráveis. O museu faz parte do Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG), que também administra o Museu das Amazônias, em Belém, o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, e o Paço do Frevo, no Recife.
“Acabamos de abrir o Museu das Amazônias, que fica em Belém, onde vai ser sede da COP. Tem toda uma programação conjunta”, explica Natália. A ligação entre São Paulo e Belém não é casual: “Belém é o lugar que concentra o maior número de favelas do Brasil”.
Para a diretora, sediar a COP na cidade é uma oportunidade “não só para olhar para o que precisa ser enfrentado, mas principalmente para garantir um compromisso global sobre a importância do Sul global no enfrentamento da crise climática”.
Em São Paulo, o museu realizou o “esquenta COP” com mesas de diálogo. Durante novembro, a programação segue dedicada à pauta climática, com exibições de filmes, exposições e o projeto “Favela Projeta” – quatro dias de projeções sobre clima.
Discurso versus prática
Para Natália, a discussão sobre racismo ambiental e justiça climática ganhou espaço, mas ainda não chegou efetivamente à base. Inspirada no movimento de pessoas com deficiência, ela questiona: “nada sobre nós sem nós. Quem é que está falando sobre isso?”.
A diretora critica representações meramente simbólicas e observa que muitas pessoas falam sobre o tema sem vivê-lo. “As ações menos ainda chegaram [à base], exceto aquelas que surgem da própria base”, avalia. Sua experiência de 13 anos na administração pública mostra que políticas demandam tempo: “quando chegam à base, muitas vezes [as políticas públicas] já precisam ser transformadas”.
Reconhecer o presente para construir o futuro
Natália defende que o primeiro passo é “entender o momento que estamos vivendo, de que já estamos impactados por uma mudança climática e as condições são diferentes para cada um”. Em viagem à Colômbia, ela observou que “as melhores experiências aconteceram no território. Isso dá uma legitimidade e tem um alcance que é orgânico”.
Seu conselho é pragmático: “se não tentarmos criar grandes novas ideias, mas olhar para aquilo que já está acontecendo, enfrentar o que já está acontecendo, o presente importa muito para pensar no futuro”.
Ela ressalta que o impacto climático já é realidade e cita exemplos concretos: ondas de calor, crise hídrica com rodízio de água em favelas, água potável que não é potável. “Essas são invisíveis. Impactam o indivíduo primeiro, depois passam a ser uma questão coletiva quando o indivíduo se reconhece no outro impactado”, explica.
Citando o conceito ubuntu – “eu sou porque nós somos” –, ela reforça: “o indivíduo só consegue se fortalecer quando reconhece o outro. É nesse sentido que o museu passa a ser um lugar de acolhimento para que as pessoas pertençam, criem o que está acontecendo e pertençam àquilo”.
O papel dos museus, segundo Natália, é garantir protagonismo e criar registros para que não sejam outras pessoas contando histórias que não viveram. “Nós somos os ancestrais do futuro. O que estamos fazendo agora é muito importante”, conclui.