Em agosto de 2023, uma enorme mesa quadrada separava presidentes e representantes de oito países da América do Sul. Eles discutiam o fortalecimento da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Chamado de Cúpula da Amazônia, o evento marcou o início da caminhada de Belém (PA) rumo ao favoritismo para receber a COP30.
No centro da mesa, estava o anfitrião, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com forte discurso para a união dos países a fim de reduzir o desmatamento da Amazônia. Mas, do seu lado esquerdo, o petista ouviu uma cobrança acintosa para evitar a exploração de petróleo na Foz do Amazonas, próximo à costa do Amapá. A reclamação partiu de Gustavo Petro, presidente da Colômbia, um dos países mais impactados pela mudança do clima.
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A cobrança foi ignorada. Tanto que o tema virou uma das prioridades para o governo brasileiro, que cedeu à pressão do Congresso Nacional, tem avançado nas tratativas para a exploração e até apoiado projetos para afrouxar regras ambientais.
O roteiro é muito parecido com o que o Brasil já viveu em anos anteriores. Em 2020, ainda no governo Jair Bolsonaro (PL), o país afrouxou diversas leis que tratam do assunto e foi alvo de cobranças de França e Noruega, que ameaçaram cortar os financiamentos ao Fundo Amazônia caso o Planalto não reduzisse o desmatamento na floresta.
Mas as cobranças não fizeram o Brasil perder protagonismo na geopolítica climática. Desde a década de 1990, quando realizou a Rio 92, o país manteve posição de destaque no debate ambiental e é reconhecido pela intermediação de conflitos em negociações.
Contudo, o governo brasileiro conseguiu reverter a imagem negativa no cenário internacional e se credenciou para receber a COP 30, evento climático promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU). A costura de um acordo para o financiamento climático e das florestas é a principal aposta do país para se manter no protagonismo do debate climático mundial.
“A função do Brasil é juntar, levar esses 196, 197 países para um acordo comum. É um trabalho de diplomacia gigantesco. O Brasil tem um bom histórico diplomático e é forte na negociação e com diálogo aberto com vários países, o que facilita no avanço de um acordo”, afirma Alexandre Prado, líder de mudanças climáticas do WWF-Brasil.
Mesmo com a redução do desmatamento, o Brasil continua sendo vigiado pela ONU e, principalmente, pelos países investidores na Amazônia. Desde 2009, R$ 4,5 bilhões foram investidos no Fundo Amazônia, financiamento controlado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Após o recorde de desmatamento na região em 2021, com 13 mil quilômetros quadrados de área desmatada, o Brasil conseguiu reduzir os índices para 6,2 mil km² em 2024. O número é o menor registrado desde 2015.
“O mundo está olhando com preocupação para o que está acontecendo aqui internamente, porque o que acontece internamente também tem reflexo na Conferência do Clima. O Brasil vai presidir a conferência. Esse local de presidência é mais forte quanto maior é o exemplo demonstrado pelo país que está nessa presidência”, ressalta Márcio Astrini, diretor do Observatório do Clima.

Queimadas na Amazônia cresceram 91% em maio deste ano, se comparado ao mesmo período de 2024, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Foto: Bruno Kelly/Amazonia Real
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Se o Ministério do Meio Ambiente comemorou a redução de desmatamento em 2024, a pasta comandada pela ministra Marina Silva voltou a acender o sinal de alerta no último mês. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), as queimadas na região Amazônica quase dobraram em maio deste ano, se comparado ao mesmo período do ano passado.
Grande parte desse desmatamento registrado se deve à seca e ao aumento da temperatura global. Outro fator que alavanca o desmatamento na região são os incêndios criminais, que cresceram 88% entre agosto de 2023 e setembro de 2024, de acordo um levantamento feito pela Polícia Rodoviária Federal (PRF).
“O clima mais quente seca a floresta, facilitando incêndios naturais — e criminosos se aproveitam para queimar e grilar terras públicas. É a dupla face da crise amazônica: mudança climática e ação predatória”, afirma André Guimarães, diretor-executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).
O cenário atual confirma um estudo feito pela pesquisadora Luciana Gatti, do Inpe, que aponta a falta de resistência de partes da floresta Amazônica, como na região de Parauapebas (PA), para se reconstruir sozinha em meio às queimadas. Isso porquê o desmatamento, segundo o levantamento, está tornando a floresta frágil e sem conseguir ser autossustentável. A pesquisa, realizada há pouco mais de dois anos, foi corroborada pelo Ministério do Meio Ambiente em coletiva de imprensa no começo do mês de junho.
“Hoje, a Amazônia está emitindo mais gás carbônico do que ela sequestra. Porque está tendo desmatamento e, principalmente, por conta da degradação. Essa é uma má notícia e a resposta que a sociedade tem que dar a isso é acabar com o desmatamento e criar as condições para a floresta se regenerar e ser recuperada”, ressalta Guimarães.
Para além do desmatamento, o governo federal tem sofrido com críticas de ambientalistas pelo protagonismo em projetos que retrocedem leis ambientais. Um deles é o afrouxamento do licenciamento ambiental, aprovado pelo Congresso Nacional no mês passado e que está na mesa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O projeto altera regras para a liberação do documento, criando novas modalidades para o aval de obras e exploração de terras. A medida beneficia diretamente o agronegócio e a exploração de minérios, além de construções consideradas prioritárias para a União.
“Um governo que tem esse tipo de responsabilidade de imagem internacional, precisa zelar para que imagem seja mantida na prática. E a prática, neste último período do Brasil, está sendo muito negativa. A gente tem no horizonte de eventos da agenda ambiental coisas que são muito ameaçadoras para a agenda”, reforça Márcio Astrini.
O texto aprovado pelo Legislativo ainda favorece a exploração de petróleo na Foz do Amazonas, principal ponto de impasse entre o governo e ambientalistas. A medida também foi criticada pelo Ministério do Meio Ambiente, mas a pressão feita por Lula e por congressistas provocou um silêncio da pasta nas últimas semanas.
A proposta é capitaneada pelo Ministério de Minas e Energia, que vê chances de alavancar a arrecadação da União com a exploração. Outro que cobra o investimento no local é o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), que incluiu um dispositivo no projeto do marco do licenciamento ambiental que permite a liberação da exploração na região equatorial até o fim deste ano.
O marco também pode agilizar o andamento das obras na BR-319, entre Manaus (AM) e Porto Velho (RO), que está em processo de pavimentação. A obra é criticada por ambientalistas, que afirmam haver chances de desmatamento no meio do coração da Amazônia.
“Você tem uma cadeia de más notícias que exigem uma resposta dura do governo. E essa resposta dura não está vindo. Pelo contrário, em alguns momentos o governo é incentivador de uma parte dessa agenda negativa”, explica Astrini.
“O que acontece de prejuízo está na imagem que o Brasil quer construir como líder ambiental. O exemplo é construído dentro de casa. E quando dentro de casa você está tomando medidas contrárias à agenda, você perde a condição de liderança”, reforça.
Para especialistas, as ações recentes do governo e do Congresso colocam em xeque o protagonismo do Brasil no debate climático mundial. A avaliação é que as decisões tomadas pelo país podem gerar um descompasso entre as promessas feitas no Acordo de Paris e o que efetivamente é entregue pela União.
“O processo de negociação climática exige avanços contínuos (como no Acordo de Paris), mas o Brasil retrocede ao fragilizar leis ambientais históricas. Isso mina a credibilidade, pois acordos internacionais dependem de confiança — e descumprir promessas, como flexibilizar regras, gera desconfiança global”, avalia Alexandre Prado.
Os países signatários do Acordo de Paris precisam apresentar uma Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC), documento que aponta os feitos ambientais atingidos e as perspectivas para os próximos anos. O Brasil sempre foi um dos primeiros a apresentar os dados. Entretanto, não está prevista uma multa para os países que não atingem as metas ambientais. A penalização é a quebra de confiança do cenário internacional à aquele Estado que não cumpriu o acordo e, para ambientalistas, é nesse ponto que o Brasil deve manter o alerta.
“Não tem multa se país não cumpre a NDC. A multa é a desconfiança dos outros países. Essa confiança é intangível em negociações ambientais. A partir do momento em que temos uma NDC que fala sobre desmatamento e o Congresso retrocede nessas leis, estamos dando sinais de que não vamos cumprir com a nossa promessa no Acordo de Paris”, ressalta Prado.
Hipocrisia europeia
As sinalizações políticas contra a política ambiental do Brasil não se restringem apenas às cobranças de países como França e Noruega. Neste ano, a União Europeia rebaixou o país, afirmando que o nível de desmatamento era “padrão”.
Apenas os países que formam a UE, além dos Estados Unidos, Canadá, China, Filipinas e Quênia foram considerados de “baixo risco” de desmatamento. Rússia, Belarus, Coréia do Norte e Mianmar foram classificados como de “alto risco”.
De pronto, a classificação europeia revoltou o governo brasileiro, que afirmou ser “discriminatória e unilateral” a decisão do bloco econômico de rebaixar a conduta ambiental do Brasil. Ambientalistas também foram ao ataque ao receberem o resultado do estudo e apontam a certa hipocrisia europeia nas discussões.
Um exemplo da situação ambiental europeia está na Rússia, um dos maiores países do mundo em extensão territorial. Entre janeiro e julho de 2024, o país perdeu 3,5 milhões de hectares de floresta, com mais de 6 mil focos de incêndio registrados em sete meses.
Já países como Finlândia, Romênia, Estônia e Hungria chegaram a aumentar o registro de desmatamento em 2022 para garantir o fornecimento de energia após a redução da distribuição de gás e petróleo russos após as sanções aplicadas pelo bloco europeu aos russos pela eclosão da guerra com a Ucrânia.
“A Europa pode exigir produtos sem desmatamento, mas sua própria política energética é cheia de contradições. E, acredito, que mesmo que o Brasil tenha responsabilidade global sobre a Amazônia, ele não pode arcar sozinho com os custos dessa preservação. O desafio é equilibrar soberania, cooperação internacional e a urgência climática – mesmo num mundo de incoerências”, afirma André Guimarães, do IPAM.
Outro fator que coloca descrédito na Europa nas discussões ambientais é o investimento na exploração de combustíveis fósseis. A França, por exemplo, passou a investir na exploração de petróleo na Foz do Amazonas, mesma região que o Brasil discute perfurar, às margens da Guiana Francesa.
Já a Noruega, uma das maiores investidoras do Fundo Amazônia, é 12ª maior exploradora de petróleo do mundo, com a retirada de 1,8 milhão de barris por dia. Ela fica à frente de países como Nigéria e Catar, que tem aumentado seu investimento na exploração do combustível. Os dados são referentes à 2023 e foram divulgados pelo Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás.
“EUA e Europa cobram o Brasil, mas também falham em reduzir suas próprias emissões de petróleo, evidenciando a complexidade geopolítica. Eles pressionam o país sobre desmatamento e exploração na Amazônia, mas continuam a expandir projetos fósseis em seus territórios”, afirma Alexandre Prado, líder de mudanças climáticas do WWF-Brasil.
Mesmo com a contradição, a intensidade das cobranças sobre o governo brasileiro tem um motivo claro. O Brasil tem a maior reserva florestal do mundo, que acaba sendo um ativo global e de interesse desses países: a Amazônia.
“Há uma contradição clara: exigem liderança climática do Brasil enquanto mantêm subsídios a combustíveis fósseis e não cumprem metas ambiciosas de transição energética. Isso cria um duplo padrão — o Brasil é criticado por explorar petróleo na Foz do Amazonas, mas países como Noruega (maior produtor de petróleo da Europa) ou EUA (com novos leilões de petróleo no Golfo do México) não são cobrados com a mesma intensidade. A diferença é que o Brasil tem a Amazônia, um ativo global, e por isso a pressão é desproporcional”, completa Prado.

Brasil deve investir mais de R$ 3,2 bilhões em transição energética em 10 anos, de acordo com o Ministério de Minas e Energia
O Brasil do futuro
Apesar de o Brasil mirar com bons olhos a exploração de petróleo em uma região próxima da Amazônia, o governo federal tem tentado alavancar a bandeira da transição energética. Para ambientalistas, inclusive, o país pode se tornar referência no assunto.
Um levantamento elaborado pelo Ministério de Minas e Energia (MME), aponta que o Brasil deve investir cerca de R$ 3,2 bilhões em até 10 anos para a transição energética. De acordo com a pasta, há buscas por investimentos internacionais, além de estudos para inovação em energias renováveis. As novidades devem ser apresentadas para o mundo durante a COP 30.
O Brasil ainda tenta disparar na frente com a criação de um fundo para a transição energética. Capitaneado pela Petrobras, Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e pelo BNDES, a aplicação deve receber aporte de R$ 435 milhões.
“No fornecimento de energia, o Brasil tem um país territorial, teria como explorar outras fontes de energia sem necessariamente ter grandes barragens ou novos tipos de exploração de petróleo e gás”, afirma o representante da WWF-Brasil.
Mas, na avaliação de especialistas, os investimentos ainda são baixos perto do que o Brasil pode explorar nos próximos anos. Para Alexandre Prado, da WWF-Brasil, o governo tem capacidade de liderar as discussões sobre o tema, mas ainda falta manter consistência em seu discurso.
“O Brasil poderia estar liderando essa discussão, mas, infelizmente, não está. Se o Brasil, ele tem consistência de discurso, ele tem que propor um caminho de redução, de transição, que já foi acordado em Dubai. O Brasil deveria estar fazendo esse tipo de discussão”, completa.