O potencial da biodiversidade brasileira para uma moda mais sustentável

Matérias-primas locais e saberes tradicionais oferecem alternativas para o setor têxtil

O potencial da biodiversidade brasileira para uma moda mais sustentável

O Brasil ocupa uma posição privilegiada no cenário global da moda. Maior exportador de algodão do mundo, o país é, também, um dos mais biodiversos do planeta, com culturas extremamente diversas e ricas. Essa combinação abre caminhos para repensar a indústria têxtil, revisitando a ancestralidade, a história e a produção de matérias-primas locais.

“Bioeconomia e moda podem ter muitas relações de sucesso. Apesar de todas as complexidades que existem quando se fala sobre cadeias produtivas locais, há muitas oportunidades na extração de matérias-primas regionais e no trabalho com comunidades e territórios que mantêm culturas tradicionais”, afirma Fernanda Simon, diretora executiva do Fashion Revolution Brasil, em entrevista ao IstoÉ Sustentável.

No Nordeste e no Norte, saberes de tecer, trançar, fazer rendas e bordados vêm se perdendo ao longo do tempo. “Precisamos ter um olhar mais cuidadoso para trazer valorização e apoiar essas culturas, esses saberes dos territórios, até mesmo como uma solução para as mudanças climáticas, em vez de olhar só para essa grande produção de moda”, defende Fernanda. A abordagem representa uma mudança de paradigma: em vez de depender de matérias-primas derivadas de combustíveis fósseis, como poliéster e poliamida, é possível desenvolver materiais que fazem parte da cultura brasileira e dialogam com a biodiversidade local.

O caso da borracha: um modelo de parceria

Fernanda cita o caso de uma marca que produz com borracha da Amazônia há aproximadamente 20 anos para ilustrar como a biodiversidade pode ser incorporada à moda de forma sustentável. “Existe uma relação realmente próxima da marca com a comunidade produtiva, uma conexão com movimentos sociais, organizações da sociedade civil locais e cooperativas”, descreve a diretora do Fashion Revolution, que já visitou essas comunidades. “Há também a participação de ONGs no processo. Existe esse trabalho conjunto da empresa com a sociedade civil, com o governo, com políticas públicas.”

Ao longo do tempo, a produção foi se fortalecendo e se estruturando. As comunidades, organizadas em cooperativas e associações, conseguem se articular melhor com o poder público. “A marca se coloca no lugar de realmente estimular, apoiar, de procurar o comércio justo, de trazer benefícios”, conta.

O projeto Mulheres da Borracha, criado em parceria com a ONG SOS Amazônia, exemplifica essa postura. “Foi identificado que havia a necessidade de um incentivo para as mulheres se organizarem, entenderem seu papel, e foi criado um projeto com a organização. A marca se coloca à disposição de apoiar esse tipo de iniciativa e estimular que a comunidade prospere de diversas formas.”

A cadeia produtiva do látex no Acre carrega ainda uma carga simbólica ligada ao legado de Chico Mendes. “Ele já falava: achei que estava protegendo a floresta, hoje vejo que estamos protegendo a humanidade, a vida. Conforme você articula trabalho para aquelas populações, é uma forma de proteger o território do gado, do agro que vai se aproximando”, observa Fernanda. Para ela,  a dedicação para empoderar os seringueiros e organizá-los em grupos e sindicatos representa uma articulação importante entre poder público, empresa e sociedade.

O desafio de escalar com responsabilidade

Nem toda empresa que trabalha com produtos da floresta mantém uma relação genuína com as comunidades. “Já vi muitos casos em que a empresa quer o produto da floresta, mas paga um preço muito baixo, não participa do dia a dia, não sabe os desafios que existem ali. Às vezes são desafios logísticos, às vezes com energia, com mulheres, crianças na comunidade, questões estruturais”, relata Fernanda. “Existem marcas que se vendem falando que trabalham com esses produtos, mas essa extração nem pode se dizer sustentável, porque precisaria de um mínimo de participação no desenvolvimento local.”

Fazer iniciativas genuínas ganharem escala passa pelo trabalho em redes. “Eu acredito muito nesse lugar de colaboração, de empresas, de mídia, de poder público, de academia, de estimular esse desenvolvimento e cruzar oportunidades”, defende. A questão do volume precisa estar de acordo com a real capacidade do grupo produtivo e da realidade local. A moda e a mídia também têm papel importante em valorizar esses materiais.

A conversa sobre bioeconomia vem acontecendo em vários espaços, mas a realidade de muitas comunidades produtivas, indígenas e quilombolas ainda está distante do que grandes corporações discutem em eventos. “Existe um grande percurso para que a bioeconomia, de fato, seja sociobioeconomia, seja estimulada com muito respeito. Mas com certeza esse precisa ser o caminho”, conclui Fernanda.

Para ela, o Brasil tem a oportunidade de liderar uma transformação na indústria da moda global, valorizando sua biodiversidade, suas culturas tradicionais e seus saberes ancestrais, enquanto oferece alternativas concretas às matérias-primas derivadas de combustíveis fósseis que hoje dominam o setor.