Nenhuma expedição científica do Museu Paraense Emílio Goeldi retorna sem trazer novas espécies. Mamíferos, peixes e até aves continuam sendo descobertos em cada incursão pela Amazônia. A taxa de descobertas acompanha a intensidade das viagens ao campo, revelando uma realidade sobre a maior floresta tropical do mundo: a extensão do que ainda se desconhece permanece incalculável.
Entre 11 e 21 de novembro, enquanto Belém sedia a COP30, a instituição com 160 anos de história se transforma na Casa da Ciência do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). O espaço que acolhe debates sobre mudanças climáticas é o mesmo que preserva o registro material da diversidade que se busca proteger.
Para Marlúcia Martins, coordenadora de Pesquisa e Pós-Graduação do museu, onde trabalha há 40 anos, a instituição acumula conhecimento que pode ser decisivo para os debates climáticos. “É muito importante que a biodiversidade seja mantida nessas pautas. A manutenção do clima depende da manutenção da biodiversidade, isso está muito claro para todo mundo”, afirma. Mas é preciso ouvir o que os anfitriões científicos têm a dizer sobre a exploração da biodiversidade.

Entre oportunidades e armadilhas
Sobre a apropriação econômica da biodiversidade, Marlúcia estabelece distinções necessárias. “A bioeconomia tem várias facetas, inclusive várias interpretações que têm sido dadas e várias apropriações”, observa. E nem todas merecem o mesmo apoio.
A primeira vertente diz respeito ao pagamento por serviços ambientais. “Nesse tipo de remuneração, a floresta como um todo é reconhecida e as pessoas que vivem nela também são reconhecidas como ativos econômicos importantes, isso é fundamental para a humanidade”, defende. Esses recursos devem ser revertidos para a própria floresta e para quem luta para mantê-la em pé.
Depois, o segundo ponto a se levar em consideração envolve os produtos da floresta. O objetivo é que a produção consiga chegar diretamente do produtor ao consumidor, com o menor número de intermediários possíveis. O museu atua nessa frente ao desenvolver biotecnologia junto com as comunidades e identificar bioativos. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) mantém um setor dedicado à valorização do conhecimento tradicional e à repartição justa de benefícios. “Precisamos avançar bastante nesse processo, mas temos uma legislação brasileira de suporte para que essas populações recebam o devido retorno econômico”, reconhece Marlúcia.
Por fim, a terceira questão elencada por Marlúcia é a que envolve o mercado de carbono, e que tende a ser a mais polêmica. “Não podemos transformar o carbono no ativo financeiro e econômico principal. Ele não é.” De acordo com ela, os projetos de carbono recebem recursos, mas devolvem poucos benefícios para as comunidades. “São muito pontuais, geralmente os projetos são apropriados por grandes empresas e não ajudam na repartição dos benefícios para quem de fato conserva a floresta”, critica. O risco está no foco exclusivo em carbono sem considerar a biodiversidade, o que pode levar à homogeneização sociocultural.
Outra preocupação de Marlúcia é quando empresas passam a ocupar espaços que deveriam ser supridos pelo poder público. “O recurso dos créditos de carbono deve ser feito para impulsionar a economia local, e não para substituir serviços de saúde, educação, transporte, comunicação”, alerta. Muitas vezes, empresas chegam às comunidades carentes oferecendo benefícios que são obrigações do Estado. “Benefício é para garantir a floresta em pé, para garantir o desenvolvimento econômico das comunidades naquilo que lhes for interessante desenvolver.”
O Brasil se comprometeu a transformar o arco do desmatamento no arco da restauração. Marlúcia vê oportunidades nessa cadeia de valor, mas estabelece uma condição. “A restauração ecológica é necessária, é importante, é compromisso nacional, mas ela também exige cuidados. Qual é o nosso principal cuidado? Que a restauração construa uma floresta tão diversa daqui a 50 anos como as que a gente tem hoje.” O museu mantém o CIPREp, centro que reúne 11 laboratórios dedicados à restauração. Os estudos abrangem desde a qualidade das sementes até a antropologia e a etnobiologia relacionadas às comunidades.
Para que qualquer uma dessas vertentes da bioeconomia funcione, porém, há uma base incontornável. “Como é possível desenvolver uma bioeconomia se não existir o conhecimento básico sobre a biodiversidade?”, questiona Marlúcia. É aqui que o papel das coleções científicas se torna fundamental.
O cartório da floresta
Indígenas voltam ao Museu Emílio Goeldi para reaprender seus próprios idiomas que estão desaparecendo. Recuperam grafismos específicos de suas culturas, registrados décadas atrás em materiais etnográficos preservados nas coleções. O museu funciona como um arquivo vivo de identidades que, sem esse registro, poderiam se perder. “Todo o material da coleção científica é a salvaguarda identitária do mundo que a gente registra”, explica Marlúcia.
As coleções funcionam como referencial para identificação geográfica e certificação de produtos. Quando uma espécie é reconhecida, exemplares ficam depositados na coleção científica. A partir desse material, desenvolvem-se estudos genômicos, identificam-se produtos bioativos, estabelecem-se protocolos. “É como se você pensasse: a pessoa existe, mas cadê a certidão de nascimento dela? Está no cartório. As coleções científicas são o cartório da biodiversidade.”
Esse conhecimento acumulado ganha um palco privilegiado com a realização da COP30 em Belém. “É muito importante. O museu, que tem 160 anos, muitas vezes não é conhecido até pelo próprio Brasil. Talvez a gente seja mais conhecido internacionalmente do que nacionalmente”, observa Marlúcia. “Essa COP deve realmente colocar o Brasil na liderança dos enfrentamentos climáticos. Obviamente, é um orgulho para Belém, é um orgulho para o Museu. Mas mais do que orgulho, é uma oportunidade para sermos ouvidos e compreendidos por todos.”
A mensagem central dos eventos realizados no museu durante a conferência busca inverter uma percepção. “O que queremos mostrar claramente é que nós somos a solução. Nós não temos só problemas, somos vítimas dos problemas, mas temos soluções para apresentar à sociedade.”
Para que essas soluções se concretizem, no entanto, o museu precisa superar desafios estruturais. Após 12 anos sem um concurso público, a instituição enfrenta o envelhecimento dos quadros de funcionários. A carência atinge tanto pesquisadores quanto técnicos, como os mateiros, que são os identificadores de plantas com décadas de experiência. “Precisamos que haja um fluxo de entrada de pessoas para que os jovens doutores, que nós mesmos formamos, tenham oportunidade de trabalho, mas que as instituições também sejam providas dos recursos humanos necessários.”
Em recursos financeiros, a Amazônia recebe cerca de 3% do total investido no país em ciência e tecnologia. Para Marlúcia, a consciência sobre a urgência climática cresce conforme as pessoas sentem os impactos. “Já faz 40 anos que a ciência prevê o que está acontecendo agora. As pessoas tomam consciência quando sentem na pele.”
A diferença, agora, é que a ciência tem as respostas. “Esta tem que ser uma COP de implementação. Temos que fazer concretamente, porque nós já discutimos por muito tempo e nós já sabemos bastante o que deve ser feito. Agora é hora de implementar.”