Sob a superfície azul que cobre mais de 70% do planeta, uma teia de vida, energia e equilíbrio se move no ritmo das correntes marítimas. Além de sua função ecológica, os oceanos sustentam uma parte expressiva da economia global. Se fossem um país, formariam a sétima maior economia do mundo, com um PIB estimado em US$ 2,5 trilhões por ano, segundo relatório do WWF e do Boston Consulting Group. Ao considerar os serviços ecossistêmicos, como regulação climática, absorção de carbono e proteção costeira, seu valor sobe para mais de US$ 24 trilhões. A pesca e a aquicultura empregam diretamente cerca de 60 milhões de pessoas, segundo dados da FAO, e aproximadamente 3 bilhões dependem do oceano como principal fonte de proteína animal.
Apesar da importância, os oceanos foram historicamente marginalizados nas negociações climáticas. Esse cenário começou a mudar recentemente, e a COP30, em Belém, pode consolidar de vez a presença dos oceanos na agenda climática.
O principal regulador do clima
“O oceano funciona como um estabilizador térmico global”, explicaLara Iwanicki, diretora de Advocacy e Estratégia da Oceana. A fotossíntese realizada pelo fitoplâncton sequestra carbono da atmosfera e produz cerca de metade do oxigênio disponível na atmosfera.
“Parte desse carbono é armazenada no fundo do mar por meio de processos como a neve marinha, criando um grande estoque de carbono marinho”, explica Lara.
Ainda, ela alerta que o aquecimento das águas reduz a capacidade do oceano de sequestrar carbono. “Um oceano mais quente dissolve menos CO2 e contribui para a acidificação do mar, o que compromete ecossistemas e o seu papel de regulador climático”, explica.
Alexander Turra, professor do Instituto Oceanográfico da USP, defende que é estratégico inserir a função dos oceanos nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs). “O oceano não é palco da negociação, mas é instrumento essencial para enfrentar as mudanças climáticas”, afirma. Foi com esse objetivo que Brasil e França lançaram, em junho, o desafio das NDCs Azuis, incentivando outros países a incluir ações concretas de proteção marinha em suas metas climáticas nacionais.
Segundo Turra, reconhecer o papel dos oceanos como sumidouros de carbono e geradores de energia renovável é essencial para ampliar sua presença nos compromissos climáticos.
“O oceano precisa estar claro nas NDCs para que seus benefícios sejam refletidos nas estratégias de mitigação e adaptação”, reforça.
Invisibilidade histórica
“O oceano e a agenda oceânica sempre foram tratados como se estivessem desconectados da agenda climática”, destaca Janaína Bumbeer, bióloga e gerente de projetos da Fundação Grupo Boticário. Segundo ela, nem mesmo os documentos preliminares da COP30 mencionavam a palavra “oceano” até o início de 2025.
Ao mesmo tempo, Marina Corrêa, analista de conservação e líder de oceanos do WWF-Brasil, aponta avanços recentes nos espaços de discussão.
“O reconhecimento do oceano na UNFCCC vem crescendo desde a COP24, com a criação do Ocean and Climate Change Dialogue. Mas, mesmo assim, o nexo oceano-clima ainda é marginalizado.”
Para Marina, colocar os oceanos no centro da COP30 é crucial para fortalecer a base científica e política das ações climáticas relacionadas ao mar.
Essa separação histórica contrasta com os dados científicos. O Relatório Especial do IPCC sobre Oceanos e Criosfera (SROCC) indica que o oceano absorveu mais de 90% do calor excedente gerado pelas emissões humanas desde os anos 1970, além de reter entre 20% e 30% do CO2 emitido pelas atividades humanas. Ignorar esse sistema compromete a eficácia das soluções propostas para enfrentar a crise climática.
Um sistema em colapso
A urgência da integração entre os temas cresce à medida que sinais de alerta se acumulam. Em 2024, o sul da Grande Barreira de Corais sofreu um episódio severo de branqueamento, com 95% das colônias do gênero Acropora mortas em menos de 70 dias por conta do estresse térmico. Mesmo áreas protegidas não escaparam.
O aumento das ondas de calor marinhas é outro sintoma da crise. Segundo uma revisão feita pela plataforma ScienceBrief, a frequência de ondas de calor dobrou entre 1982 e 2016, sendo atribuída majoritariamente às mudanças climáticas causadas pelo homem. O Relatório Especial do IPCC alerta que, mesmo limitando o aquecimento a 2°C, os impactos atuais são “duradouros e sem precedentes”, afetando a biodiversidade, a pesca e as populações costeiras.
Expectativas para Belém
Celebrada por especialistas, a inclusão formal dos oceanos na agenda da COP30 só foi possível graças à mobilização da sociedade. Um destaque foi o grupo de engajamento do G20 sobre oceanos, coordenado por Turra, que articulou solicitações e argumentos em defesa da inserção do tema. A iniciativa resultou na decisão do embaixador André Corrêa do Lago de incorporar os oceanos como uma das prioridades da conferência. “A expectativa é que a COP30 funcione como um marco para que a relação entre oceano e clima nunca mais seja dissociada”, afirma Turra.
Segundo ele, esse tipo de articulação é inédito, especialmente por influenciar diretamente a declaração do país anfitrião. “A relação entre oceano e clima sempre esteve presente nas evidências científicas, mas só agora começa a aparecer claramente nas tomadas de decisão internacionais”, reforça.
A sinalização mais concreta da mudança veio em junho de 2025, com a publicação da quarta carta da presidência brasileira da COP30. No documento, os oceanos foram incluídos explicitamente entre os seis eixos temáticos da Agenda de Ação do evento, ao lado de florestas, agricultura, cidades e energia. O segundo eixo, “Gestão sustentável de florestas, oceanos e biodiversidade”, prevê iniciativas de conservação, restauração e proteção de ecossistemas marinhos e costeiros, reconhecendo seu papel na mitigação das emissões, adaptação climática e manutenção da biodiversidade. A Agenda de Ação pretende servir como um “celeiro de soluções” ao conectar ambição climática a oportunidades de desenvolvimento em investimentos, inovação, finanças e tecnologia.

Belém (PA), sede da COP30 – Raphael Luz / Agência Pará
Ainda assim, os desafios persistem. Como os oceanos não são oficialmente um item negociado dentro da Convenção do Clima, seu espaço nos acordos depende de menções políticas. “As negociações influenciam diretamente o reconhecimento da proteção dos oceanos e de seus defensores como essenciais no enfrentamento da crise climática. Mesmo sem uma pauta específica, os oceanos precisam estar mencionados e no centro das decisões que definirão a ambição climática global até 2030 e além”, explica Marina.
Além disso, há esforços para articular agendas paralelas, como os Tratados Globais de Plásticos e de Alto-Mar, com as discussões climáticas.
“Atualmente há uma fragmentação institucional que prejudica a eficácia das soluções. Clima, biodiversidade e poluição precisam estar integrados”, afirma Janaína.
Para Turra, conectar essas agendas é fundamental. “O Tratado de Alto-Mar, por exemplo, é estratégico para proteger ecossistemas que sequestram e armazenam carbono em escala global. Esses ambientes precisam estar saudáveis para continuar atuando como aliados climáticos.”
Brasil: contradições e oportunidades
O Brasil, com mais de 11 mil quilômetros de costa e 5,7 milhões de quilômetros quadrados de zona econômica exclusiva, pode liderar a agenda oceânica, mas precisa resolver contradições. “Não podemos falar em proteger corais enquanto o país aposta na expansão da produção de petróleo”, critica Lara. “Há uma incoerência entre os discursos e a política energética nacional, sobretudo no caso da Foz do Amazonas.”
A engenheira ambiental defende que o país escolha entre se manter aliado ao passado fóssil ou liderar o futuro da transição energética com base em soluções oceânicas. Tais iniciativas existem: a criação e o fortalecimento de áreas marinhas protegidas, a restauração de manguezais, a transição para energias renováveis offshore, a descarbonização do transporte marítimo e a valorização da sociobiodiversidade costeira.
“Não há como combater a crise climática ignorando 70% do planeta”, conclui Marina. “Os oceanos e as comunidades que os protegem são aliados estratégicos para mitigar, adaptar e construir um futuro climático mais justo.”