O Brasil está entre os grandes mercados da indústria da beleza, ao lado de potências como China e Estados Unidos. O setor movimenta bilhões de dólares anualmente, mas seu crescimento vem acompanhado de um paradoxo: enquanto as emissões de carbono relacionadas à extração e processamento de matérias-primas representam entre 30% e 50% do impacto da cadeia, apenas 3% do mercado brasileiro é ocupado pela chamada “beleza limpa”.
Para Cris Dios, cosmetóloga e fundadora do Grupo Laces, essa disparidade revela um problema estrutural que vai muito além da consciência ambiental. “O varejo não está adaptado a esse consumo do Clean Beauty”, disse em entrevista ao IstoÉ Sustentável.
Segundo ela, produtos sustentáveis enfrentam dificuldades para competir em gôndolas de supermercados e drogarias, onde dividem espaço com grandes marcas que contam com um marketing robusto e custos de produção mais baixos.
Varejo excludente e custos proibitivos
O desafio é financeiro e logístico. Cris explica que empresas médias como o Laces lutam para manter a presença no varejo tradicional. “Um produto que está ali na gôndola de supermercado está, muitas vezes, do lado de uma grande marca que tem um marketing gigante e que, por ter muito menos ativos naturais — às vezes nada de ativos naturais ou 0,01% — tem um conjunto de commodities que são muito mais baratos”, descreve.
A fundadora questiona onde o consumidor brasileiro pode, de fato, encontrar produtos de beleza sustentável. “Se hoje você decidir ter uma cadeia mais sustentável no lado da beleza, onde você compra o seu produto? Você vai nas drogarias, você não vai achar. No supermercado você não vai achar. Você vai achar às vezes em uma feira de consumo consciente ou em um mercadinho de consumo consciente, mas isso tem nas grandes cidades, às vezes no interior não tem”, conta.
A transição para práticas mais sustentáveis exige investimento. O Grupo Laces levou três anos para converter toda a sua linha de produtos para frascos 100% de reuso, com tecnologia que reduz o tempo de biodegradação de 200 para cinco anos. “Não foi imediato, porque também não é sustentável pegar todos os frascos já printados e transformar, jogar tudo fora e começar”, pondera Cris.
Ela reconhece que as alternativas sustentáveis ainda custam mais, embora o cenário esteja mudando. A executiva está no mercado há quase 40 anos e acompanhou essa evolução de perto. Para empresas médias, manter presença no varejo tradicional significa arcar com custos proibitivos. “É muito difícil você se manter. Para nós, como uma empresa média, é quase impossível manter verba de trade, manter todos esses custos que existem, o giro, sem um grande empenho de marketing, como as outras marcas têm”, revela Cris.
A fundadora defende que o varejo precisa adotar uma postura diferente em relação às marcas sustentáveis. “Os varejistas, eles têm que ter um olhar — eu ia falar amoroso, mas talvez essa palavra não caiba muito no mundo dos negócios — mais amoroso para esse lugar. Dar espaço para essas marcas, porque é muito difícil você se manter”, conta.
Ao estudar o mercado português antes de exportar para o país, Cris observou que lá fora o cenário é diferente. “Em Portugal, vemos o Clean Beauty, o mercado já está mais olhando para isso. Agora, no Brasil que tem tanto potencial, ainda não temos esse espaço na gôndola.”
A fábrica do Grupo Laces é certificada como orgânica desde 2008 por órgãos como IBD e Ecocert. Isso significa que todo ingrediente que entra na produção é rastreado, garantindo que não haja poluição ambiental, trabalho escravo ou outras práticas nocivas na cadeia. “Todo produto que entra nessa fábrica é rastreado”, explica Cris. Essas certificações agregam custos, mas também valor. O desafio está em comunicar esse diferencial ao consumidor final e convencer o varejo de que vale a pena disponibilizar espaço para esses produtos.
Solução pela capilaridade
A resposta do Grupo Laces para contornar as barreiras do varejo tradicional foi criar um modelo alternativo de distribuição. O projeto Bioma Salons, iniciado há três anos, conta com 64 salões de beleza pelo Brasil — do Nordeste ao Sul, incluindo os interiores dos estados.
“Trabalhamos com uma comunidade de cabeleireiros, às vezes 20 pessoas que trabalham naquele salão, que é de porte pequeno, médio, não é o principal salão da cidade, porque isso é muito importante: levar de forma mais democrática essa forma de consumir mais consciente”, explica Cris.
O modelo funciona da seguinte maneira: a empresa retira todas as marcas convencionais e capacita os profissionais para usar produtos de beleza limpa. “Mudamos aquele núcleo de profissionais, que muda uma comunidade de consumo”, resume.
Os resultados financeiros têm sido positivos. Cris relata que os salões parceiros apresentam crescimento de faturamento superior a 60%. Muitos chegam ao projeto em um momento crítico comercialmente, sem lucro e com problemas de gestão. “Não é que vai chegar dizendo: ‘Eu estou com um super lucro e vou investir nisso’. Não, é no bottom line final ali, é no meio do processo que a gente coloca sustentabilidade”, explica.
A transformação vai além dos números. Profissionais que antes priorizavam uma bolsa de grife passam a investir em energia fotovoltaica, capacitação e logística reversa. A fundadora do Laces defende que o governo precisa criar incentivos para ampliar o mercado de beleza sustentável. “Acho importante ter incentivos, de repente governamentais, de impostos, para que a gente possa abrir mais esse mercado”, avalia.
Ela compara a situação com outros países que já avançaram nessa direção e argumenta que o Brasil, sendo o país mais biodiverso do mundo, deveria liderar esse movimento.
Apesar de todos os obstáculos estruturais, Cris acredita que a mudança está, em última instância, nas mãos do consumidor. Ela defende que cada ato de consumo é um ato político, capaz de transformar toda a cadeia produtiva. A executiva ilustra esse poder com uma provocação: “O que mais move o mundo? O título de eleitor ou o cartão de crédito? Deveria ser o título de eleitor, mas, na melhor das hipóteses, a cada quatro anos isso se modifica. O cartão de crédito é a cada dia, a cada consumo”, pondera.
Para Cris, o futuro da beleza sustentável no Brasil depende de uma equação complexa que envolve conscientização do consumidor, adaptação do varejo, incentivos governamentais e persistência das empresas que já trabalham nesse segmento. “Estamos em transição. É um processo de sempre andar em direção à melhora”, conclui.