Na imensidão da floresta amazônica, ratinhos de menos de 30 centímetros percorrem áreas menores que um hectare. Noturnos e discretos, esses pequenos mamíferos escapam do olhar de quem costuma procurar por onças-pintadas em armadilhas fotográficas ou por botos cor-de-rosa que emergem das águas escuras. Passam despercebidos até para os moradores ribeirinhos que convivem com eles há gerações. Ainda assim, são eles que sustentam, na base, toda a cadeia alimentar da maior floresta tropical do planeta. E, por dependerem do equilíbrio da floresta, estão entre os primeiros a sofrer quando o clima muda.
“Faço expedições de pesquisa na Amazônia há 30 anos e posso afirmar que ela está mais seca”, diz o professor Alexandre Percequillo, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP). “É um fenômeno que estamos reparando, principalmente na Amazônia Ocidental, uma das regiões mais chuvosas por conta da proximidade dos Andes.”
Em julho de 2025, Percequillo liderou uma expedição ao Rio Jutaí, no oeste do Amazonas, em busca de pequenos mamíferos. Durante um mês de trabalho de campo, a equipe enfrentou apenas dois dias de chuva forte — pouco para uma região conhecida pela alta pluviosidade. A abundância de capturas ficou abaixo do esperado: em 13 dias, pesquisadores de quatro instituições — USP, Fiocruz, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade Federal de Lavras (UFLA) — capturaram 78 pequenos mamíferos de 18 espécies, uma taxa de sucesso de 1,5%.

Pesquisadores analisam condições da região do rio Jutaí para a captura de pequenos mamíferos – Foto: Jonne Roriz/ Nosso Impacto
“Na Amazônia, o sucesso de captura sempre é baixo, mas a minha expectativa era maior do que o resultado que tivemos”, explica o pesquisador. “A sensação que dá é que essa falta de chuva também tem diminuído a abundância, o número de indivíduos nessas áreas.”
Sem água, sem vida
Os pequenos mamíferos da floresta — roedores e marsupiais que vivem no chão e nas árvores — têm mecanismos de regulação de perda d’água pouco eficientes. São animais adaptados ao ambiente úmido e sombreado do interior da mata e, quando o microclima muda, sofrem imediatamente.
“Esses bichos são bem sensíveis a esse aquecimento”, diz Percequillo. “Se o ambiente muda rápido, eles são facilmente afetados.”
A dinâmica é relativamente simples: com menos chuva, há menos água e menos comida disponível; os animais produzem menos filhotes e as populações diminuem. “Numa área que poderia ter dez indivíduos daquela mesma espécie, o resultado é que ela terá apenas cinco indivíduos”, explica o pesquisador. “Acredito que os animais sofrem e vão desaparecendo.”

Diminuição de chuvas na Amazônia tem impacto na vida de pequenos mamíferos – Foto: Jonne Roriz/ Nosso Impacto
Diferentemente das onças ou dos macacos, que podem se deslocar por grandes distâncias em busca de condições melhores, esses roedores têm áreas de vida minúsculas. “Eles precisam de apenas um hectare para sobreviver. Eles não andam como um gato do mato, como um macaco”, observa Percequillo. Quando a floresta aquece por dentro, as árvores começam a ficar mais espaçadas, o sub-bosque diminui e esses animais perdem as condições para sobreviverem.
“A floresta começa a aquecer por dentro, e esses bichos desaparecem completamente”, afirma o pesquisador. “Ao afetar os animais da base da cadeia alimentar, todo o resto da comunidade será impactado.”
A base que sustenta a floresta
Um ecossistema saudável funciona como uma engrenagem complexa, em que cada espécie desempenha uma função específica. Quando uma peça falha, o sistema inteiro pode ser comprometido. Na Amazônia, os pequenos mamíferos ocupam uma posição que, apesar de visível apenas para os olhos treinados para encontrá-los, é fundamental para manter a engrenagem em movimento.
“Esses bichinhos são a base da cadeia alimentar”, explica Percequillo. “Eles servem de alimento para vários grupos de pequenos carnívoros, várias espécies de serpentes, aves de rapina e corujas. Quando perdemos a diversidade desses grupos, isso afeta a diversidade dos outros consumidores que estão mais altos na cadeia alimentar.”
Além de servirem de alimento para predadores, os pequenos roedores desempenham um papel fundamental na regeneração da floresta. Ao comer sementes, controlam quais plantas germinarão em excesso e evitam desequilíbrios. Ao transportar e defecar sementes intactas em outros locais, dispersam espécies vegetais pelo território. Ao escavar tocas, melhoram a infiltração de água no solo e modificam os níveis de nutrientes disponíveis.

Roedores são importantes como fonte de alimento para predadores e para manter o equilíbrio do ecossistema – Foto: Jonne Roriz/ Nosso Impacto
Os roedores formam o grupo com a maior diversidade de espécies entre todos os mamíferos. Segundo a Sociedade Brasileira de Mastozoologia, são conhecidas 114 espécies na Amazônia, das quais mais de 70 são endêmicas — ou seja, existem apenas nesse bioma. Como grandes áreas da floresta ainda são pouco estudadas, o potencial para a descoberta de novas espécies permanece elevado.
Um estudo publicado na PLOS ONE em 2016 quantificou a vulnerabilidade desses animais às mudanças climáticas: 99% das espécies endêmicas de mamíferos analisadas na Amazônia brasileira — incluindo 15 espécies de roedores — podem estar criticamente expostas até 2050.
O ambiente que os ribeirinhos conheciam
Os moradores das comunidades ribeirinhas do Jutaí confirmam o que os cientistas observam. “As pessoas com quem conversamos falaram que hoje sentem muito mais calor do que no passado, e que as secas estão mais intensas”, conta Percequillo. “Esse é o referencial temporal que temos: pessoas que vivem na Amazônia há muitos anos.”
Os dados científicos corroboram a percepção local. O ano de 2024 foi o mais quente da série histórica de 175 anos, com temperatura média global 1,55°C acima dos níveis pré-industriais. Um estudo publicado na Nature em 2024 estimou que entre 10% e 47% da floresta amazônica podem estar expostos a distúrbios combinados até 2050, capazes de desencadear transições inesperadas em todo o bioma.

Rios cada vez mais secos dificultam a vida de ribeirinhos na Amazônia – Foto: Jonne Roriz/ Nosso Impacto
A própria pesquisa de campo já sente os efeitos dessa mudança. Em 2023, durante uma expedição ao Rio Branco, a equipe quase ficou presa porque o nível da água baixou mais rápido do que o esperado. “A água do rio diminuiu numa velocidade muito maior do que o normal”, relata Percequillo.
Registrar antes que desapareçam
A expedição ao Jutaí faz parte de um projeto maior, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que busca mapear a biodiversidade de pequenos mamíferos na Amazônia ocidental — uma das regiões mais ricas e menos estudadas do bioma. No total, foram coletados 179 animais de 47 espécies, que incluem dez de roedores, oito de marsupiais, 25 de morcegos, três de primatas e uma de porco-do-mato.

Espécies de morcegos foram coletadas como parte da expedição. Foto: Jonne Roriz/ Nosso Impacto
Dois tipos de armadilha foram usadas para a captura dos animais: caixas com iscas de frutas e pasta de amendoim, que se fecham quando o animal entra, e baldes enterrados no solo, dos quais os bichos não conseguem sair. Centenas dessas armadilhas são distribuídas pela floresta e verificadas diariamente pelos pesquisadores. Os animais capturados são levados ao barco, que funciona também como laboratório: ali, os espécimes passam por eutanásia, seguindo protocolos éticos, e são preparados para preservação em coleções científicas. Durante o processo, os pesquisadores registram as medidas de cada animal e coletam amostras de tecido para análises genéticas e de secreções para estudos de virologia.

Pesquisadores enfrentam um árduo trabalho de campo para encontrar os animais – Foto: Jonne Roriz/ Nosso Impacto
Os pesquisadores suspeitam que duas dessas espécies possam ser novas para a ciência: um marsupial do gênero Monodelphis, conhecido como cuíca, e um morcego frugívoro do gênero Sturnira. As identificações, porém, ainda precisam ser confirmadas por análises laboratoriais, tanto morfológicas quanto genéticas. Muitas espécies geneticamente distintas parecem idênticas a olho nu, o que torna essencial a coleta de exemplares de referência para as coleções científicas.
As amostras coletadas estão sendo submetidas a diferentes tipos de análise: os tecidos passarão por estudos genéticos, enquanto as secreções foram enviadas ao Institut Pasteur de São Paulo para pesquisas de virologia. Ao final do processo, todos os espécimes serão depositados nas coleções científicas da USP, onde ficarão disponíveis para outros pesquisadores interessados em estudar a biodiversidade amazônica. Mais do que responder perguntas imediatas, o trabalho estabelece uma linha de base: é um registro do que existe agora para que, no futuro, seja possível medir o que mudou.

As informações coletadas servirão de base para avanços da ciência no futuro – Foto: Jonne Roriz/ Nosso Impacto
Enquanto a ciência corre para documentar essa biodiversidade, os ratinhos continuam sua vida noturna, invisíveis para quase todos. Se desaparecerem, as serpentes sentirão falta. As corujas terão menos presas. As sementes que eles predavam germinarão em excesso. O ecossistema se reorganizará de formas imprevisíveis. Os ambientes naturais são feitos também desses bichos pequenos, que quase ninguém vê, mas que sustentam tudo o que está acima deles.
















