A pecuária na Amazônia enfrenta um ciclo que pressiona a floresta: as pastagens mal manejadas se degradam em poucos anos, o que faz com que os produtores decidam avançar sobre novas áreas. A solução passa por aumentar a produtividade sem expandir terrenos desmatados e por criar sistemas de rastreabilidade que garantam transparência em toda a cadeia. A avaliação é de Márcio Sztutman, diretor-executivo da The Nature Conservancy (TNC) Brasil, em entrevista ao IstoÉ Sustentável.
“A pecuária é uma das cadeias mais ligadas ao desmatamento na Amazônia, seja por meio direto, seja de forma indireta, com a especulação fundiária”, explica Sztutman. O problema se agrava porque as áreas convertidas para pastagens, sem o manejo adequado, ficam degradadas com a intensidade de chuvas da região, o que reduz a rentabilidade.
Um dos maiores gargalos da cadeia é a rastreabilidade. Dados mostram que um boi passa, em média, por 17 propriedades antes de chegar ao frigorífico, mas os abatedouros só conhecem a origem direta do animal. “É muito difícil afirmar que essa carne está completamente livre de desmatamento, porque não existe a capacidade de acompanhar por onde aquele boi rodou em diversas fazendas”, afirma Sztutman.
No Pará, um esforço de múltiplos atores busca implementar um programa de rastreabilidade individual que revelará se o animal passou por ilícitos ambientais nas propriedades por onde circulou. O objetivo é elevar o nível de transparência e permitir ajustes na cadeia, o que atende aos interesses de produtores, frigoríficos, Estado, investidores e consumidores.
Os frigoríficos estão sob pressão do Ministério Público Federal (MPF) e do mercado para demonstrar que não compram carne de origem ilegal, o que tem efeito sobre suas ações nas bolsas de valores. O Estado busca promover uma pecuária que abra novos mercados e dê acesso a financiamentos. Os investidores não querem aplicar recursos em uma indústria atrelada a ilícitos ambientais.
Na medida em que há convergência entre produtores, governos, indústria, financiadores e consumidores, a sustentabilidade se associa à qualidade da carne. “Uma carne produzida corretamente do ponto de vista ambiental tem mais sabor e mais qualidade”, diz Sztutman.
Mudança sistêmica pelo alinhamento de interesses
Para o diretor da TNC Brasil, as transformações estruturais só ocorrem quando diferentes setores conseguem encontrar pontos de convergência. “A gente evita atuar em projetos que tenham só um público ou só uma geografia. Entendemos o problema e as minúcias. Porque, ao fazer isso, é possível identificar os pontos de acupuntura para alinhar interesses”, explica Sztutman.
Historicamente, os diferentes elos da cadeia pecuária operam em desconfiança mútua. O produtor desconfia do frigorífico, que desconfia do varejo, e os investidores questionam todos os atores. “Se a gente não muda essas relações de desconfiança e de competição, que são perde-perde, para um modelo em que existe um espaço de benefício mútuo e de valor compartilhado, a gente não muda o sistema”, analisa.
O alinhamento significa encontrar pontos nos quais diferentes setores convergem: as comunidades locais querem renda por meio da produção de sementes e de novos empregos; as empresas buscam acesso legal à terra e ao mercado de carbono; o Estado precisa garantir a proteção de bens públicos; os investidores querem reduzir riscos; e os consumidores valorizam a qualidade.
Além da transformação de cadeias como a da pecuária, a valorização econômica da floresta em pé ganha força. Existem oportunidades desde produtos florestais não madeireiros, como castanhas e óleos, até recursos madeireiros e serviços ambientais.
Nesse sentido, a TNC Brasil atua em parceria com povos indígenas e comunidades tradicionais. “Temos uma aliança com esses grupos visando dar protagonismo na definição dos seus rumos, inclusive econômicos”, afirma Sztutman. Os territórios indígenas representam uma parcela expressiva da Amazônia brasileira, somando-se aos territórios quilombolas e às reservas extrativistas.
Concessões para recuperação: inovação no Pará
No estado do Pará, a TNC Brasil coordenou uma inovação global: a primeira concessão florestal voltada para recuperação de áreas degradadas. A experiência envolveu uma área que havia sido grilada e desmatada ilegalmente, localizada em uma das regiões de maior pressão sobre a floresta. O grileiro responsável pelo desmatamento foi preso, mas restava definir o destino daquele território degradado.
“Como trazer governança, como evitar novos desmatamentos e como transformar aquela área que estava se tornando um bolsão de pobreza e de ilegalidade em uma área de pujança econômica e de recuperação florestal?”, questiona Sztutman.
Tradicionalmente, as concessões florestais são utilizadas para extração de madeira ou produtos não madeireiros. Esta foi a primeira vez no mundo que o modelo foi adaptado para recuperação. Após estudos jurídicos, econômicos e de viabilidade técnica, foi realizado um leilão na B3, a bolsa de valores do Brasil. Uma empresa saiu vencedora com direito à exploração da área para recuperação ao longo de 40 anos, o que permite gerar fluxo de caixa com base no mercado de carbono e estabelecer parcerias com moradores locais para a produção de sementes.
A presença do projeto trouxe o Estado para a região, ampliando a governança territorial. Os impactos foram além da área concessionada: no entorno, a incidência de desmatamento caiu drasticamente. “É uma forma de geração econômica e de inclusão social baseada na recuperação de florestas”, resume Sztutman.