O uso da terra responde por mais de 70% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa — a maior fatia do país. Nessa conta entram a mudança do uso do solo e as atividades agropecuárias. A forma de contabilizar e atribuir essas emissões a diferentes setores, porém, ainda gera debate entre especialistas, governo e sociedade civil. Para Andreia Bonzo, advogada e colíder do Grupo de Trabalho Clima da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, sem resolver a questão fundiária, o país terá dificuldade para avançar na agenda climática. “A questão fundiária brasileira é básica. Ela é a base para colocarmos os ‘pingos nos is’, para incentivar quem precisa de incentivo, para encaminhar quem precisa de encaminhamento, para assistir quem precisa de assistência”, afirma.
A Coalizão reúne 450 membros — empresas do agronegócio, organizações da sociedade civil e instituições acadêmicas — e participa das consultas públicas do Plano Clima, documento que pretende transformar as metas climáticas brasileiras em ações concretas para cada setor da economia.
Uma das propostas da organização é diferenciar os tipos de uso do solo na hora de contabilizar as emissões. Segundo dados do SEEG, dos 70% das emissões vinculadas ao uso da terra, 46,2% vêm de florestas e 27,5% de atividades agropecuárias. “Esse dado é importante porque é uma questão de narrativa em relação ao agro, que tem um papel muito importante na nossa economia”, explica Bonzo.
Separar desmatamento legal e ilegal também importa para a formulação de políticas públicas. Dentro dos limites do Código Florestal, desmatar é permitido. Quando há grilagem ou exploração irregular de madeira, não. O total de emissões relacionadas ao desmatamento não muda, mas a diferenciação é importante para direcionar fiscalização e incentivos para quem precisa. “É importante manter em mente que uma grande parte do nosso agro consegue fazer o uso do solo de forma legal”, ressalta a colíder do GT Clima.
O Brasil carrega problemas históricos de titulação de terras, o que dificulta definir responsabilidades sobre o uso de determinadas áreas. Bonzo conhece o tema de perto: já foi colíder do grupo de trabalho fundiário da Coalizão. Territórios de assentamentos e quilombolas, por exemplo, têm regimes jurídicos próprios, mas aparecem na mesma classificação do plano setorial do agro. A sugestão é que sejam tratados em separado, para que as políticas públicas possam se adequar a cada realidade.
A grilagem de terras públicas está no início de uma cadeia que pode incluir corte de madeira, queimadas e ocupação agropecuária. Bonzo trabalhou no Instituto Igarapé, organização que pesquisa crimes ambientais na Amazônia, e acompanhou esse encadeamento de perto. “Às vezes você pode ver uma ocupação de uma atividade do agro que nem sabe que aquilo foi oriundo de uma atividade ilegal anterior, como a própria grilagem”, observa. As emissões geradas nesse processo entram na conta do país e podem ser atribuídas ao setor agropecuário como um todo.
“A ilegalidade existe, mas nós, como país, precisamos entender essas diferenças, porque talvez estejamos fechando os olhos para as nossas maiores potencialidades”, afirma Bonzo. Na visão dela, a narrativa que opõe agro e meio ambiente não reflete a realidade da maioria dos produtores rurais brasileiros. Como advogada, ela acompanhou clientes que se esforçam para cumprir a legislação e sofrem com generalizações. “Muitas atividades são muito sérias e acabam sofrendo porque tem uma outra parte que traz essa narrativa distorcida.”
Há ainda quem viva nas áreas rurais e florestais sem alternativas de renda. Para essas pessoas, a ilegalidade pode parecer o único caminho para sustentar a família. “Estamos falando sobre pessoas. Quem são essas pessoas? O que elas precisam?”, questiona a advogada. Oferecer alternativas econômicas, na visão de Bonzo, faz parte do enfrentamento do desmatamento e não pode ficar de fora das políticas climáticas.
A rastreabilidade na pecuária é uma das ferramentas para lidar com a ilegalidade. Hoje, um boi pode ser criado em uma terra grilada, vendido a um frigorífico e chegar ao consumidor sem que ninguém perceba a irregularidade. Saber a origem do animal permite identificar se há desmatamento no caminho. Para a Coalizão, esse avanço representa uma das principais conquistas da última década — e um passo importante para mudar a imagem do setor.
O Código Florestal de 2012, com suas exigências de reserva legal e áreas de preservação permanente, oferece um caminho para organizar o uso do solo no país. Mapear as propriedades e cumprir obrigações ambientais são os primeiros passos para separar quem produz dentro da lei de quem opera fora dela. Com essa base, o Brasil pode começar a destravar seu potencial de produção aliada à conservação.